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O Dossiê Canziani: entre a Google, a Celepar e a soberania digital do Paraná

Contratos firmados pela Celepar com a Google revelam cláusulas que transferem riscos ao Estado e levantam dúvidas sobre a soberania digital do Paraná

Por Gazeta do Paraná

O Dossiê Canziani: entre a Google, a Celepar e a soberania digital do Paraná Créditos: Foto: Emerson Dias/Ncom

Bruna Bandeira da Luz/Cascavel

 

Na manhã de 11 de setembro de 2025, o Paraná acordou com uma liminar que paralisava uma das iniciativas mais ousadas — e polêmicas — do governo Ratinho Jr.: a privatização da Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar). O despacho do conselheiro-substituto Lívio Sotero Costa, do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR), falava em riscos financeiros, fragilidades técnicas e ameaça à continuidade das políticas públicas. Mais que isso, alertava para a possibilidade de que dados sensíveis da população, ligados a saúde, segurança, educação e arrecadação, passassem para as mãos de empresas privadas.

Fundada em 1964, a Celepar abriga quase mil funcionários e é considerada o coração digital do Estado. Ali estão guardados os históricos médicos de pacientes do SUS, as infrações de trânsito registradas pelo Detran, as matrículas de alunos da rede pública e as declarações de impostos dos contribuintes. Sua venda, aprovada pela Assembleia Legislativa em apenas nove dias corridos, em regime de urgência e sob sigilo, foi denunciada pela oposição como uma ameaça à soberania digital.

“Estamos falando de uma empresa estratégica, que administra informações de saúde, de segurança, de educação e de servidores públicos. Nós somos contra a venda da Celepar, porque ameaça a soberania digital e o direito à privacidade da população”, declarou Arilson Chiorato (PT), líder da bancada de oposição.

 

O guardião da inovação

Foi a Alex Canziani, secretário de Inovação e Inteligência Artificial, que coube a tarefa de responder às críticas. Ex-deputado federal, Canziani assumiu em 2024 a recém-criada pasta estadual de Inteligência Artificial, com a promessa de transformar o Paraná em vitrine da modernização digital. Naquele setembro, ao reagir à decisão do TCE, garantiu que “quem controla os dados é o governo do Paraná e isso não se abrirá mão, até porque a lei não permite”.

A frase soou firme, mas contrastava com documentos já assinados meses antes. Em 6 de junho de 2025, a Celepar firmara contrato com a Google Cloud, tornando-se revendedora oficial das soluções da multinacional.

 

O contrato em inglês

Os documentos obtidos pela reportagem, revelam cláusulas assimétricas. A Celepar deve impor aos clientes a aceitação integral dos Termos de Serviço da Google. Em caso de divergência, prevalece a versão em inglês, redigida pela empresa. Se houver litígio, não cabe à Justiça comum, mas a uma arbitragem privada da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, em São Paulo.

A vigência inicial é de 12 meses, renovada automaticamente, e a Google pode rescindir o acordo até por conveniência. Nessa hipótese, está autorizada a assumir diretamente os clientes da Celepar ou transferi-los a outro parceiro comercial. Enquanto a estatal responde por tributos, indenizações e até falhas de seus clientes, a multinacional limita sua responsabilidade a requisitos mínimos de segurança.

O Plural revelou ainda que a Celepar projetava um orçamento de R$ 670 milhões para a parceria, em três anos, segundo apresentação interna. A Sanepar, companhia de saneamento controlada pelo Estado, já havia firmado contrato de R$ 20,9 milhões com a Celepar para uso do Google Workspace.

 

O freio do TCE e a “armadilha econômica”

Ao suspender a privatização, o conselheiro Lívio Sotero Costa citou a ausência de estudos detalhados e alertou para uma “armadilha econômica”: os custos de reestruturação, contratação de pessoal e adequações à LGPD poderiam consumir rapidamente o valor arrecadado com a venda. Costa também destacou que informações de segurança pública e de autoridades só poderiam ser administradas por servidores do Estado.

O secretário Canziani rebateu, garantindo que, mesmo privatizada, a empresa não abriria mão da custódia dos dados. “Quem vai operacionalizar, quem vai poder ser o controlador desse dado é o governo”, disse. Mas os contratos mostravam outra realidade: a Celepar já operava sob termos que davam à Google poder de auditoria, prevalência jurídica e rescisão unilateral.

 

De Curitiba a Las Vegas

Meses antes da assinatura do contrato, em abril de 2025, o governador Ratinho Jr. se encontrou em Las Vegas com Eduardo López, presidente da Google Cloud para a América Latina. A agenda oficial, divulgada pela Agência Estadual de Notícias (AEN), falava em ampliar o uso de inteligência artificial no Estado.

Reportagem da Agência Pública, publicada em 9 de setembro, mostrou que esse encontro fazia parte de uma estratégia mais ampla de inserção da Google no poder público brasileiro. O Paraná seria vitrine: reconhecimento facial no Detran, mapeamento de crimes, cruzamento de boletins de ocorrência e uso de IA em educação e previdência.

 

A filha em Brasília

Enquanto o pai articulava contratos no Paraná, em Brasília a filha de Alex, a deputada federal Luísa Canziani (PSD-PR), se consolidava como uma das principais vozes das Big Techs no Congresso. Em abril de 2025, poucos dias antes de assumir a presidência da Comissão Especial da Câmara sobre Inteligência Artificial, Luísa publicou em suas redes fotos diante do letreiro colorido da Google, em Mountain View, e vídeos abraçando a lobista Roberta Rios, gerente de Relações Governamentais da empresa no Brasil.

A viagem, como revelou a Agência Pública, foi bancada pela Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e reuniu parlamentares em visitas às sedes de Google, Microsoft e Amazon. Em entrevistas, Luísa defendeu como pilares da comissão a liberdade de expressão e o desenvolvimento tecnológico, posicionando-se contra a inclusão da regulação das plataformas digitais no PL da IA.

Não foi a primeira vez. Em 2021, presidiu a Frente Digital, que o Intercept Brasil classificou como “tropa de choque do Google e do iFood”. Em 2023, votou contra o projeto das fake news, alinhando-se às plataformas. Em 2024, criticou a taxação de serviços de streaming. Até assinou, junto com outros 151 parlamentares, pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, após decisão que suspendeu temporariamente a rede X no Brasil.

O fio invisível

Especialistas alertam para o risco de conflito de interesses. Alex Canziani, no Paraná, assina contratos que integram a infraestrutura digital do Estado à Google. Sua filha, em Brasília, preside a comissão que decidirá os rumos da regulação da inteligência artificial no país.

“Mesmo que não haja benefício direto, pode sim haver conflito de interesses”, disse Luciana Ramos, professora de Direito Constitucional da FGV, em entrevista à Agência Pública. Para o cientista político André Pereira César, a sobreposição fragiliza a credibilidade legislativa: “Em casos como esse, seria esperado que a parlamentar se declarasse impedida”.

 

Entre modernização e soberania

O governo Ratinho Jr. insiste em apresentar o Paraná como o Estado mais inovador do Brasil. A Celepar, que nasceu como cérebro estratégico da administração pública, agora é peça de um tabuleiro global no qual contratos redigidos em inglês e arbitragem privada definem o destino dos dados dos cidadãos.

Para o secretário Alex Canziani, trata-se de modernização inevitável. Para críticos, é a erosão da soberania digital. No meio, uma coincidência reveladora: pai e filha ocupando, em esferas diferentes, os pontos mais estratégicos de uma engrenagem que une Curitiba, Brasília e o Vale do Silício.

A pergunta que emerge é direta: o Paraná ainda controla seus dados — ou já são as Big Techs que ditam as regras?

 

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