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O juiz que desafiou o esquecimento: ecos da ditadura e a luta pela memória

O tempo, que soterra biografias e reescreve verdades, apagou da memória institucional o juiz Alvim Messias. Mas a ausência não é mero descuido: é silenciamento

Por Gabriel Porta Martins

O juiz que desafiou o esquecimento: ecos da ditadura e a luta pela memória Créditos: Reprodução Internet

No salão austero do Fórum de Cascavel, onde as fotografias dos magistrados compõem um mosaico de justiça e poder, falta um rosto. O tempo, que soterra biografias e reescreve verdades, apagou da memória institucional o juiz Alvim Messias. Mas a ausência não é mero descuido: é silenciamento.
Nos anos de ferro da ditadura militar, Messias ousou fazer o que se esperava da toga: garantiu um habeas corpus a oito cidadãos de Cascavel, presos sob a mão de chumbo do regime. Sua assinatura em um simples documento era uma lâmina contra o arbítrio. A resposta do poder não tardou: cassado, destituído, riscado dos anais da Justiça como quem se apaga um nome da pedra. Seu crime? Ser juíz em tempos de trevas.
O apagamento de Alvim Messias ecoa em outras histórias que a ditadura tentou soterrar. Mas a terra nunca silencia para sempre. Quase meio século depois, o cinema ergue um espelho ao passado e obriga o Brasil a encarar seus fantasmas.

O passado exige respostas
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, reacendeu uma ferida que nunca cicatrizou. Baseado na história real do desaparecimento do deputado Rubens Paiva, o longa escancara a violência estatal que não poupou nem mesmo quem acreditava na democracia. A atuação visceral de Fernanda Torres como Eunice Paiva, a mulher que enfrentou um Estado assassino em busca da verdade, garantiu-lhe o Globo de Ouro e a chance de disputar o Oscar.
A repercussão da obra resgatou não apenas a dor dos Paiva, mas de milhares de famílias que ainda perguntam: onde estão nossos mortos? A Lei da Anistia, promulgada em 1979, segue como um manto de impunidade, perdoando não apenas perseguidos políticos, mas também torturadores. Agora, com o caso de Rubens Paiva novamente sob análise do Supremo Tribunal Federal, a questão se impõe: até quando a justiça se furtará a julgar seus próprios carrascos?

O silêncio de Cascavel
Se no plano nacional a batalha por justiça segue nos tribunais, no Paraná a memória da ditadura também se ergue contra o esquecimento. A história do juiz Alvim Messias é apenas uma entre tantas de coragem e repressão. Em Cascavel, a repressão foi voraz. O jornalista Aluízio Palmar, um dos nomes que ajudaram a desvendar os crimes da ditadura no Oeste do Paraná, foi torturado brutalmente. Seu livro “Onde Foi que Vocês Enterraram Nossos Mortos?” refaz os últimos passos de desaparecidos, busca vestígios de corpos esquecidos em valas clandestinas, e revela o papel de autoridades locais na perseguição política.
A história da repressão no Oeste do Paraná, porém, não se limita ao caso de Palmar. O chamado Massacre de Medianeira ainda carrega mistérios. Seis guerrilheiros foram mortos elos fascistas na fronteira, e seus corpos, até hoje, são objeto de buscas e investigações. Também há suspeitas de que restos mortais de desaparecidos estejam no Sítio Boi Piquá, em Toledo, e em Nova Aurora. As buscas seguem, movidas pela esperança de dar fim a décadas de dúvida. O livro também detalha a morte do comerciante Severino Miola, em Santa Helena, em 1979.

A busca pela verdade
Você sabe o que é Lei da Anistia? A reportagem desta Gazeta foi às ruas para investigar o quanto a população sabe sobre a Lei da Anistia, e as respostas coletadas mostram um cenário de desconhecimento, informações superficiais e até confusão com eventos históricos e recentes. A primeira pessoa entrevistada demonstrou um conhecimento básico sobre o assunto, afirmando: "Meu pouco de informação é sobre isentar crimes políticos e militares". A resposta, embora correta em relação ao foco da lei, foi vaga e não mencionou o contexto histórico específico.
Já a segunda resposta chamou a atenção pela confusão com eventos recentes. O entrevistado associou erroneamente a Lei da Anistia ao atentado de 8 de janeiro de 2023, quando invasores atacaram os Três Poderes em Brasília: "A lei da anistia referente ao 8 de Janeiro, né? Sobre o atentado ao poder público, aos três poderes dos pessoal lá em Brasília". A fala revela uma falta de clareza sobre o que é a Lei da Anistia e seu propósito histórico. A terceira pessoa entrevistada afirmou que tem entendimento sobre o assunto. "Sobre a lei é que é referente a crimes políticos, né? Então é utilizada normalmente para consertar, digamos assim, algumas injustiças em períodos de ditadura militar ou em situações que o crime foi cometido, mas um crime político".
A Lei da Anistia, ao perdoar crimes cometidos tanto por agentes do Estado quanto por opositores do regime, impediu por décadas que os responsáveis por execuções e torturas fossem julgados. Contudo, organizações de direitos humanos e famílias das vítimas nunca deixaram de cobrar respostas. O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por sua omissão na responsabilização dos crimes cometidos pelo regime militar.
A resistência em reabrir esses casos não é casual. Há uma cultura de esquecimento institucionalizada, um pacto de silêncio que protege figuras que participaram da repressão. Isso se reflete na ausência do nome de Alvim Messias nos registros do Fórum de Cascavel, assim como na dificuldade de acesso a documentos militares que poderiam esclarecer o paradeiro dos desaparecidos.

Comissão Estadual da Verdade
A Comissão Estadual da Verdade do Paraná (CEV-PR) foi criada em 2012 com o objetivo de investigar as violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar no estado. O trabalho da comissão foi fundamental para dar visibilidade a episódios esquecidos da repressão, ouvindo vítimas e coletando provas de tortura, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais.
Entre as audiências públicas realizadas, uma em Cascavel, na Unioeste, foi um marco. Ouvindo depoimentos de ex-presos políticos, a comissão documentou a brutalidade dos porões da ditadura. Relatos de torturas praticadas na própria cidade revelaram a cumplicidade de figuras locais no aparato repressivo. O relatório final, publicado em 2017, expôs não apenas os crimes do regime, mas também a necessidade de um compromisso contínuo com a memória, a verdade e a justiça.

Memória ou esquecimento?
Enquanto o Brasil se debate sobre o passado, o nome de Alvim Messias - este sim, um dos muitos herois na luta contra a ditadura - ainda está ausente da galeria do Fórum de Cascavel. A pergunta que não quer se calar na boca das pessoas: por que juízes, desembargadores, insistem em ignorar e até negar julgamentos com base na Lei Federal da Anistia e no Artigo 8º das ADCTs da Constituição Federal, concedendo aos anistiados políticos direto que lhes é inerente? Certamente, e queremos dar-lhes o benefício da dúvida, sequer conhecer a Lei Federal da Anistia e não se dão ao trabalho de perder tempo lendo a Constituição Federal. Esta performace de nossos magistrados, certamente por desconhecerem o que é lutar contra o fascismo, só engrandece aqueles poucos juizes que tiveram a coragem de enfrentar a ditadura e, graças a isto, seus colegas de hoje estão protegidos pela Constituição Cidadã que o Brasil conquistou às custas de muito sacrifício, muita tortura e muitas vidas que se perderam naquele brutal enfrentamento.
O sacrifício do juiz Alvim Messias que lhe custou perseguições, a cátedra, a coragem de enfrentar o fascismo entre outras muitas ações pelo Brasil afora é que garantem até os seus colegas de hoje negarem o conheciumento da Lei da Anistia e seus direitos e a Constituição Federal.
Não se trata de um esquecimento casual, mas de uma escolha deliberada de quem prefere que a história seja escrita apenas pelos vencedores. Mas a memória não se apaga com tintas de censura. Seu nome ressurge nas entrelinhas de processos esquecidos, nas palavras de quem se recusa a calar e na própria matéria do tempo, que insiste em expor o que foi escondido. Seu nome permaneceu vivo, principalmente, pela atuação do seu filho, Eraclés Messias, que até o ano de 2010 atuou como desembargador no estado do Paraná.
Com uma belíssima trajetória no poder judiciário, Eraclés garantiu a continuidade do trabalho de seu pai. Após concurso para juiz substituto, no dia 27 de dezembro de 1967 foi nomeado para a comarca de Paranaguá. Atuou também nas comarcas de Antonina, São José dos Pinhais e Lapa. Aprovado em concurso para juiz de direito, em 13 de dezembro de 1968 foi nomeado para a comarca de Paraíso do Norte. Na mesma função, judicou nas comarcas de Pato Branco, Paranavaí, Ponta Grossa e Curitiba. Em 2 de maio de 1994 foi empossado como juiz do Tribunal de Alçada e, no dia 18 de outubro de 2002 foi promovido ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná. Aposentou-se, compulsoriamente, no dia 11 de junho de 2010. Faleceu em Curitiba, no dia 7 de abril de 2021.
Ainda estou aqui, diz o juiz sem foto. Ainda estamos aqui, gritam os desaparecidos. E a história, essa, sempre encontra um jeito de se fazer ouvir.