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Fraudes em descontos do INSS já eram denunciadas há seis anos na internet

Levantamento da FGV revela milhares de vídeos, buscas e processos sobre cobranças indevidas a aposentados; investigação aponta prejuízo de R$ 6 bilhões a 4,2 milhões de beneficiários

Por Gazeta do Paraná

Fraudes em descontos do INSS já eram denunciadas há seis anos na internet Créditos: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Mesmo na mira de uma possível CPI no Congresso, as fraudes envolvendo descontos indevidos em aposentadorias e pensões do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) já vinham sendo denunciadas há pelo menos seis anos na internet, sem que houvesse qualquer resposta efetiva do poder público, tanto no governo Jair Bolsonaro quanto na gestão atual de Luiz Inácio Lula da Silva. O alerta é de um levantamento inédito realizado pela Escola de Comunicação da Fundação Getulio Vargas (FGV), que encontrou, desde 2019, um volume expressivo de relatos digitais sobre o tema, agora alvo da Operação Sem Desconto, deflagrada em abril pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União (CGU).

Segundo dados obtidos pelo jornal O Globo, a pesquisa da FGV utilizou ferramentas de inteligência artificial para analisar 152 mil vídeos e cruzar diversas bases de dados. Apenas no YouTube foram identificados 108 vídeos com denúncias ou instruções sobre como cancelar cobranças ilegais e recuperar valores descontados de aposentadorias, somando 750 mil visualizações, com pico de interesse principalmente em 2024.

Também foram contabilizadas mais de 142 mil buscas no Google Trends, desde 2019, com nomes de associações investigadas por envolvimento no esquema, além de mais de 30 mil reclamações registradas no site Reclame Aqui sobre cobranças indevidas feitas pelas mesmas entidades. Há ainda mais de 10 mil peças processuais sobre o tema localizadas no Jusbrasil, uma das principais plataformas jurídicas do país.

Para Marco Aurélio Ruediger, diretor da Escola de Comunicação da FGV, o volume de alertas virtuais demonstra que o poder público falhou ao ignorar sinais claros de irregularidades. “Não é algo que aconteça agora, atravessa administrações. Podemos identificar um problema estrutural no Estado de construir mecanismos que antecipem problemas, inclusive na gestão pública e de imagem”, afirma. “Há um déficit de compreensão do potencial que o debate na internet poderia ter trazido para políticas públicas e para a própria política. O debate estava ocorrendo ali, só não era capturado. Se isso tivesse acontecido, as fraudes poderiam ter sido combatidas antes.”

De acordo com a Polícia Federal, o INSS não sustentou “medidas preventivas” para evitar as fraudes, apesar das reiteradas denúncias de descontos associativos indevidos. Entre 2019 e 2024, ao menos 4,2 milhões de aposentados e pensionistas foram vítimas de cobranças ilegais por entidades conveniadas ao órgão, que teriam desviado mais de R$ 6 bilhões sem autorização expressa dos beneficiários.

Canais expuseram golpes antes de operação

Na internet, advogados especializados em direito previdenciário se tornaram porta-vozes das vítimas. Em maio de 2024, quase um ano antes da operação da PF, o advogado Pedro Leal, do canal Benefícios INSS, relatou que um parente identificou desconto de R$ 57,75 em seu extrato do INSS para a União Nacional de Auxílio aos Servidores Públicos (Unaspub), uma das entidades sob investigação.

“Esse desconto, sem assinatura de contrato, é irregular. A pessoa da minha família está orientada e já em contato com o advogado para entrar na Justiça por danos morais”, afirmou Leal em vídeo. “Como os dados deles chegaram até essa associação? A gente tem quase certeza que é corrupção, que algum servidor público de algum local, com acesso aos dados do beneficiário, passou para essa associação. Se a pessoa não estiver acompanhando, esse desconto vai ficando. E isso está ocorrendo muito.”

Em nota, a Unaspub declarou manter “compromisso com a legalidade, a ética e a transparência” e disse entender que as investigações devem ocorrer com “independência, responsabilidade e pleno respeito ao devido processo legal”.

Outro influenciador digital, João Adolfo de Souza, do canal João Financeira, publicou há cerca de 11 meses um vídeo explicando o passo a passo para vítimas de descontos indevidos cancelarem mensalidades associativas não autorizadas. “Quanto dinheiro seu está indo embora simplesmente porque você não sabe os seus direitos?”, questionou. “Tem muita gente sendo enganada porque não sabe olhar o extrato do banco e do INSS.”

Embora a Operação Sem Desconto tenha sido impulsionada pela Controladoria-Geral da União no governo Lula, foi na atual gestão petista que os descontos ilegais explodiram, com suspeitas recaindo até sobre entidades historicamente ligadas ao PT, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). A operação levou à exoneração do então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e à prisão de operadores do esquema, entre eles o lobista Antonio Carlos Camilo Antunes, conhecido como Careca do INSS. O escândalo também resultou na saída do ex-ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT).

Ainda assim, há diversos relatos mostrando que o esquema já existia no governo Bolsonaro. Em vídeo publicado em 2021 pelo canal INSS Sem Segredo, que soma mais de 900 mil seguidores, o apresentador alertava para a proliferação de golpes contra aposentados. “Golpistas se utilizam de meios eletrônicos para obter dados dos segurados, abusando da boa-fé e, assim, se apropriar do seu dinheiro”, alertou o narrador, recomendando aos beneficiários que acompanhassem mensalmente o extrato do benefício e procurassem o INSS ao menor sinal de desconto desconhecido.

O rastreamento digital feito pela FGV reforça a percepção de que, apesar das evidências públicas, as fraudes só foram alvo de reação efetiva após milhões de pessoas já terem sido prejudicadas — e bilhões de reais desviados. O tema agora deverá se tornar um dos focos mais explosivos de uma CPI no Congresso Nacional, que promete apurar responsabilidades em diferentes governos.

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