Caso de presa punida por pegar bolo do lixo expõe excessos punitivos
Episódio em Tremembé/SP ilustra excesso punitivo e reforça críticas sobre arbitrariedade no sistema carcerário

Um pedaço de pão e um pedaço de bolo retirados do lixo foram suficientes para que uma detenta da Penitenciária Feminina II de Tremembé/SP recebesse punição disciplinar de natureza média.
O episódio, aparentemente banal, escancara a lógica de excesso de rigor que permeia o sistema carcerário brasileiro: pequenas condutas se transformam em infrações com consequências desproporcionais, afetando diretamente a execução da pena.
Não se trata de episódio isolado.
Relatos semelhantes se multiplicam em diferentes unidades prisionais do país.
A gravidade do cenário já foi reconhecida pelo próprio STF, que em 2023 declarou a existência de um "estado de coisas inconstitucional" no sistema carcerário brasileiro e determinou a adoção de medidas urgentes para conter a violação massiva de direitos fundamentais.
Pão e bolo
No caso da detenta punida por recolher pão e bolo do lixo, consta dos autos que os agentes penitenciários encontraram os alimentos durante revista de rotina e enquadraram a detenta na conduta de "dificultar a vigilância", prevista na resolução SAP 144/10.
Relatórios indicaram que outra presa teria deixado o saquinho no lixo, de onde os alimentos foram retirados. Testemunhas confirmaram a versão e a direção da unidade concluiu pela configuração da falta, enfatizando a disciplina interna.
A secretaria da administração penitenciária instaurou procedimento administrativo disciplinar e aplicou sanção de repreensão, fixando seis meses para reabilitação da conduta e suspensão de direitos previstos no art. 41 da LEP - lei de execução penal, como o recebimento de visitas, correspondência e atividades recreativas.
"Através do que se vê nos autos, ficou claro que o comportamento das apenadas caracterizou falta disciplinar, uma vez que quebrou as regras e normas internas da unidade e infringiu a legislação vigente. Diante do exposto, concluo que as pessoas privadas de liberdade -----, cometeram falta disciplinar de natureza MÉDIA, [...]."
A defesa da detenta, representada pelo advogado Victor Luiz, alegou nulidades processuais, ausência de dolo e estado de necessidade.
Segundo o causídico, ter recolhido o alimento do lixo foi "um grito silencioso por algo tão elementar quanto a subsistência", pois a detenta sofria com insuficiência alimentar e ausência de visitas.
Também destacou a desproporcionalidade da sanção diante dos princípios da insignificância e da humanidade na execução penal.
Apesar dos argumentos, o juiz da execução não reexaminou o mérito da infração.
Limitou-se a afirmar que, por se tratar de falta média, não haveria atuação judicial, conforme o art. 48 da LEP.
"Não há nada a ser decidido judicialmente sobre os fatos apurados no Procedimento Administrativo Disciplinar nº 120/2025, juntado às folhas 638-683 e destinado a apurar falta cometida em 03/05/2025 por -----, eis que se trata de falta média e esta não acarreta nenhuma providência a ser tomada por este Juízo."
Em entrevista ao Migalhas, o advogado criticou a decisão.
"Eu discordo desse posicionamento do juiz, [...] porque eu entendo que há uma negativa de prestação jurisdicional nesse caso. [...] Ao mesmo tempo em que o juiz se diz incompetente para tanto, nos parágrafos abaixo ele diz 'no mais observa-se que a conclusão a que chegou a autoridade administrativa encontra apoio na prova produzida no procedimento e a infração média está devidamente capitulada no regimento'. Ou seja, ele se manifesta, ele valida o ato, né? Então, [...] essa presa vai ficar com o histórico dela sujo por seis meses", afirmou.
Segundo ele, além do registro disciplinar, a detenta foi submetida a 20 dias de isolamento em solitária, perdeu as saídas temporárias de junho e setembro e quase teve o regime semiaberto sustado.
"Eu acho que falta sensibilidade, porque havia um contexto aqui. [...] Ela estava sem visita, ela estava sem pessoas para mandar o tal do 'jumbo', que é o mantimento, produtos de higiene, alimentação. [...] Era uma questão de fome. [...] Então acho totalmente, assim, absurda essa situação", disse o defensor, que recorreu com agravo ao TJ/SP e pretende levar o caso ao STJ e STF.
Situação rotineira
O advogado - que atua na Comissão de Políticas Penitenciárias da OAB/SP - relatou que não se trata de situação isolada.
"A gente hoje tem vivido tempos difíceis no Judiciário. Ninguém lê mais nada. E aí, o preso é só um número. Então, é recorrente que, e eu digo, seja na minha experiência, enquanto advogado, seja enquanto como coordenador da comissão, surjam relatos como esses."
Também denunciou práticas abusivas durante revistas em presídios, como o isolamento de detentos em banheiros equipados com redes, onde são obrigados a permanecer até expelirem entorpecentes após ingestão de líquidos e medicamentos.
"Isso não é falado, mas as unidades têm uma espécie de um banheiro específico, onde eles colocam uma redinha, e a pessoa tem que ficar ali presa nesse isolamento até que ela consiga defecar aquilo que é supostamente ilícito. E aí eles dão um remédio para essa pessoa e eles ficam monitorando. E eu acho que isso viola o princípio da não produção de prova contra si."
Ele também destacou que, em visitas, familiares sofrem sanções arbitrárias e que são comuns suspensão do direito por suspeitas em scanners corporais, mesmo sem prova de ilícito.
"Os familiares sofrem muitas punições por questões desse excesso de punição sem controle de legalidade", completou.
Poder administrativo sem controle
Segundo Victor Luiz, o uso de punições administrativas sem controle judicial efetivo é recorrente. O defensor questiona ainda a constitucionalidade de resoluções administrativas que tipificam condutas e impactam diretamente a liberdade.
"Até que ponto a autoridade administrativa pode tomar decisões que vão influenciar na liberdade de uma pessoa? E eu acho isso incondicional, porque eu entendo que eles (secretaria penitenciária) não poderiam legislar sobre esse assunto. Eu acho que a secretaria, por uma resolução, não poderia legislar, porque está violando a Constituição."
Afirma que a situação beira a arbitrariedade cotidiana.
"Nós costumamos dizer que cada unidade prisional tem quatro legislações, tá? A legislação do turno 1, do turno 12, do turno 3 e do turno 4. Então, a gente depende do chefe de plantão, [...] porque nós ficamos à mercê da discricionariedade, da interpretação, do subjetivismo, da má-fé do chefe de plantão."
Tipos abertos
Essa visão é compartilhada por Bruno Shimizu, defensor público no Estado de São Paulo e membro da diretoria do IBCCrim.
Em entrevista ao Migalhas, afirmou que a execução penal no Brasil "opera com alto grau de arbitrariedade", desde a redação aberta das faltas até as práticas cotidianas nas unidades.
Segundo ele, as faltas disciplinares têm efeitos gravíssimos: aumentam o tempo de encarceramento, interrompem o lapso de progressão, podem reduzir até um terço dos dias remidos e, mesmo quando classificadas como médias ou leves, rebaixam a conduta carcerária, influenciando progressão e livramento.
Para Shimizu, a LEP descreve tipos de falta "muito abertos", permitindo enquadramentos elásticos como "desrespeito a servidor".
"A gente não está nem falando de desacato, a gente não está falando de uma agressão. A gente está falando de um mero desrespeito. Então o servidor, por exemplo, pode achar que alguém olhou torto pra ele e considerar isso um desrespeito. E por isso imputar uma falta grave nessa pessoa. Eu já vi, por exemplo, uma pessoa que teve uma falta grave porque ela demorou pra entrar na cela no fim do banho de sol, porque tinha desprendido a bolsa de colostomia da pessoa", relata.
O problema se agrava, diz, porque o processo disciplinar carece de garantias mínimas.
"A própria LEP não previu, e deveria ter previsto, que o processo para apuração de falta grave precisa ter um direito de defesa efetivo. O que a LEP prevê é só que a pessoa vai ser ouvida. Atualmente, essa pessoa não é sequer ouvida por um juiz."
Em São Paulo, a defesa é comumente feita pela FUNAP, vinculada à própria secretaria, o que cria conflito estrutural.
"Então, na prática, ela é acusada pela unidade prisional, ela é julgada pela unidade prisional, e a defesa é feita por um servidor que, ao fim das contas, responde à própria unidade prisional. Ou seja, qual o resultado disso? Praticamente, é muito raro a gente ter alguma absolvição em falta grave."
Shimizu critica também a cultura de homologação judicial.
"Qualquer ilegalidade que aconteça dentro da unidade prisional é, sim, problema do juiz. Então, se for imputada uma falta média, uma falta leve a essa pessoa, é, sim, poder-dever desse juiz rever essa falta. Mas não é isso que a gente vê na prática. Os juízes entendem que essa atividade é só homologatória."
Como caminho institucional, Shimizu aponta a presença efetiva da Defensoria Pública dentro das unidades, com atuação anterior à condenação disciplinar.
No STJ
A punição de detento envolvendo alimentação foi objeto, em 2023, de decisão da 5ª turma do STJ. O colegiado afastou a punição disciplinar aplicada a um preso que se recusou a ingerir alimentos que considerava impróprios para consumo.
No caso, agentes penitenciários atestaram que a comida distribuída estaria em bom estado, mas um grupo de detentos se recusou a recebê-la nas celas, em protesto contra as más condições alimentares do presídio.
O diretor da unidade entendeu a conduta como falta grave e aplicou sanção disciplinar, decisão depois confirmada pelo juízo da execução penal e pelo tribunal estadual, com fundamento no art. 50, I, da LEP (incitação à subversão da ordem ou disciplina).
O relator do caso no STJ, ministro Ribeiro Dantas, divergiu dessa interpretação.
Reconheceu que greves de fome coletivas podem, em certas circunstâncias, configurar falta grave ou até motim, mas destacou que a recusa individual em se alimentar não pode ser enquadrada como infração disciplinar. "O ordenamento jurídico não obriga um preso a ingerir alimentos em circunstâncias que considera inadequadas", afirmou.
Segundo o ministro, a entrega de comida em condições duvidosas compromete o direito fundamental à alimentação digna, essencial à integridade física e mental do preso.
Nesse sentido, a recusa do apenado não poderia ser interpretada como indisciplina, mas como exercício de um direito básico frente à obrigação estatal de prover alimentação adequada. "A rejeição à comida duvidosa está intrinsecamente ligada à obrigação estatal de proporcionar alimentação adequada e suficiente no presídio", concluiu.
Em 2024, o ministro Sebastião Reis Júnior, do STF, anulou a aplicação de uma falta disciplinar grave a um preso que havia devolvido à biblioteca do presídio um livro em más condições. A penalidade fora imposta sob o argumento de que o detento teria rasgado o material e, portanto, o danificado.
Ao conceder HC, o ministro destacou a desproporcionalidade da medida, ressaltando que a conduta não poderia ser enquadrada como infração grave, sobretudo pela ausência de dolo e pelo dano ínfimo.
Para o magistrado, não se pode punir com severidade um apenado que busca se reeducar, justamente por meio da leitura, sob pena de inviabilizar a própria finalidade da execução penal. "É incompreensível tratar o apenado, que busca se reeducar, com excessivo rigor, sob pena de colocar obstáculos à ressocialização", afirmou.
Tortura
Em julho de 2023, inspeções em presídios do Ceará revelaram métodos de tortura aplicados por policiais penais, como a "posição taturana" e o "amassamento de testículos", além de espancamentos coletivos.
Relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontaram práticas semelhantes em unidades do Rio Grande do Norte, Roraima, Amazonas e Pará. Perícias registraram fraturas, queimaduras e marcas de balas de borracha.
Casos como esses levaram o STF a reafirmar, em 2022, a necessidade de fortalecimento do sistema nacional de prevenção à tortura, após decreto de 2019 ter esvaziado sua atuação.
STF: Estado de coisas inconstitucional
Em outubro de 2023, o STF reconheceu por unanimidade a existência de um "estado de coisas inconstitucional" no sistema carcerário, caracterizado pela violação massiva de direitos fundamentais.
A Corte determinou que União, Estados e DF elaborassem planos de intervenção, com foco na superlotação, condições das unidades e acompanhamento da execução penal.
Na ocasião, o então presidente do STF, Luís Roberto Barroso, destacou que o sistema prisional "devolve à sociedade cidadãos que se sujeitaram por anos a condições aviltantes, muitas vezes forçados a se associar a organizações criminosas".
Em 2024, o STF homologou, com ressalvas, o Plano Pena Justa, elaborado pela União e pelo CNJ em resposta à decisão.
O projeto prevê medidas contra superlotação, precariedade de alimentação e saúde, e excessos disciplinares.
Ministros, porém, apontaram fragilidades quanto ao financiamento, à indenização de presos submetidos a condições degradantes e à política de hospitais de custódia.
Arbitrariedade institucionalizada
Os casos relatados não são exceções, mas expressão de um modelo prisional sustentado pelo excesso punitivo e pela fragilidade dos mecanismos de controle.
A lógica disciplinar vigente, ancorada em resoluções administrativas de conteúdo aberto e na homologação acrítica por parte do Judiciário, transforma pequenas condutas em faltas que impactam diretamente a liberdade e o tempo de encarceramento.
Ao mesmo tempo, práticas abusivas seguem invisibilizadas sob a justificativa de manutenção da ordem interna.
Esse quadro reforça a contradição central do sistema: em vez de promover a ressocialização, a execução penal amplia a exclusão social e institucionaliza a violação de direitos fundamentais. O reconhecimento do "estado de coisas inconstitucional" pelo STF evidenciou a urgência de medidas estruturais, mas, na prática, o cotidiano carcerário permanece dominado pela arbitrariedade.
Enquanto não houver efetivo controle judicial sobre as sanções disciplinares e presença institucional capaz de garantir defesa efetiva dentro das unidades, o sistema seguirá reproduzindo punições desproporcionais e perpetuando o ciclo de violências que já foi considerado inconstitucional pela mais alta Corte do país.
As informações são do Portal Migalhas
