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Ministério Público investiga show de dupla sertaneja ligada a deputado Cobra Repórter

Diferença de R$ 34,5 mil em cachês pagos pela mesma apresentação em cidades vizinhas acende alerta sobre possível superfaturamento e favorecimento em contrato sem licitação

Por Gazeta do Paraná

Ministério Público investiga show de dupla sertaneja ligada a deputado Cobra Repórter Créditos: Divulgação

“Digita e apaga”, música de trabalho da dupla sertaneja de Rolândia, João Vitor e Gabriel, talvez descreva bem o comportamento de certas administrações públicas quando o assunto é gasto com shows sertanejos. Mas o Ministério Público do Paraná decidiu não apagar. Ao contrário: acaba de instaurar um inquérito civil para investigar a contratação da dupla em questão, feita pela Prefeitura de Primeiro de Maio por R$ 50 mil, valor três vezes superior ao pago pela mesma apresentação em Ibiporã, cidade vizinha, apenas um mês antes.

A denúncia que motivou o procedimento aponta indícios de superfaturamento e favorecimento político. Além da discrepância nos valores, o Ministério Público apura se houve uso do evento para promoção pessoal do deputado estadual Devanil Reginaldo da Silva, o Cobra Repórter (PSD), pai de Gabriel, que integra a dupla sertaneja e figura como titular da empresa contratada, a G.A. Gonçalves Silva Shows e Eventos (CNPJ 34.118.003/0001-46).

A contratação em Primeiro de Maio foi feita via inexigibilidade de licitação (nº 39/2025), com base na suposta exclusividade artística da empresa. O contrato de R$ 50 mil, firmado em 3 de julho de 2025, teve por objeto o show na 1ª Agro Fest, realizado no dia 12 do mesmo mês. Já o contrato de Ibiporã, datado de 11 de junho, refere-se a apresentação na 47ª Festa Junina Municipal e custou R$ 15.500,00.

 

Discrepância injustificada 

Segundo o relatório preliminar do Ministério Público, a diferença de R$ 34.500,00 “extrapola qualquer margem razoável de negociação” entre dois municípios geograficamente próximos e com perfis socioeconômicos semelhantes. Ambos os contratos foram firmados com a mesma empresa, para a mesma dupla e em intervalo de 30 dias. Até o momento, não há justificativas técnicas ou mercadológicas que expliquem tamanha oscilação.

O procedimento do MP tramita sob o número 0115.25.000265-2. O órgão já solicitou ao CAEX (Centro de Apoio Operacional das Promotorias) uma análise técnica sobre possível sobrepreço e encaminhou ofícios ao Tribunal de Contas do Estado do Paraná. A investigação segue em curso, com possibilidade de responsabilização por improbidade administrativa e, a depender da apuração, implicações penais e político-administrativas.

 

Entre microfones e parlamentares

A investigação também quer saber se o evento serviu de palanque para o deputado Cobra Repórter. Segundo a denúncia, o parlamentar teria feito uso promocional do show, que envolveu recursos públicos e estrutura de marketing institucional. A Constituição é clara: agentes públicos não devem se beneficiar pessoalmente de ações custeadas com dinheiro do contribuinte. O MP quer saber se esse limite foi ultrapassado.

Apuração da Gazeta do Paraná revela que a abertura da 1ª Agrofest de Primeiro de Maio, realizada nos dias 11 e 12 de julho, foi marcada não apenas pela celebração cultural, mas também por anúncios políticos de grande impacto. Durante a noite de estreia do evento, o deputado estadual Cobra Repórter (PSD) subiu ao palco ao lado do prefeito Bruno Santa Rosa e do secretário estadual de Saúde, Beto Preto, para anunciar um investimento de R$ 8 milhões para a saúde do município, incluindo a construção de um novo Pronto Atendimento Municipal (PAM), entrega de veículos e aquisição de equipamentos.

Dias após o evento, Cobra Repórter também comunicou o repasse de recursos para a compra de aparelhos de ar-condicionado para 21 escolas estaduais, incluindo a Escola Estadual do Campo Vila Gandhi, localizada em Primeiro de Maio.

 

Um padrão?

Se em Primeiro de Maio o cachê foi de R$ 50 mil, o que dizer dos demais contratos celebrados por prefeituras vizinhas com a mesma dupla, no mesmo ano, por valores muito inferiores — e quase sempre precedidos pela atuação política de Cobra Repórter? A Gazeta do Paraná puxou o fio da sanfona e encontrou um refrão que se repete em diferentes tonalidades, mas com arranjo familiar.

Antes mesmo do contrato de R$ 15.500 para o show da dupla João Vitor e Gabriel em 13 de junho de 2025, a cidade de Ibiporã já havia sido contemplada com recursos provenientes de emendas intermediadas por Cobra Repórter. Em suas redes sociais, o deputado divulgou em maio de 2024 a destinação de R$ 330 mil para a área da saúde, a serem investidos na aquisição de equipamentos e custeio de unidades básicas. Não bastasse isso, também constam anúncios de recursos para infraestrutura urbana, embora os valores e objetos exatos dessas emendas ainda não constem nos portais de execução financeira de forma completa.

Outro ponto do mapa em que a combinação entre recursos públicos e shows sertanejos parece ter ecoado é o município de Congonhinhas. Em 1º de janeiro de 2022, a prefeitura contratou João Vitor e Gabriel por R$ 15 mil, também por inexigibilidade de licitação. Detalhe: no mês anterior, em dezembro de 2021, Cobra Repórter esteve pessoalmente no município, anunciando a liberação de R$ 600 mil em recursos estaduais para obras de pavimentação no Patrimônio Santa Maria do Rio do Peixe.

A dupla também passou por Nova Fátima, após a entrega oficial de um caminhão com prancha no valor de R$ 850 mil, adquiridos com emenda parlamentar intermediada por Cobra Repórter. A apresentação ocorreu em evento comemorativo vinculado à entrega do veículo, embora o processo de contratação – novamente via inexigibilidade – não tenha seus valores divulgados de forma transparente na parte visível dos documentos obtidos até agora.

Em outubro de 2025, João Vitor e Gabriel voltarão ao palco, desta vez em Ribeirão do Pinhal. Lá, o cachê será de R$ 30 mil. Mas o que realmente chama a atenção é o contexto da contratação: o município também havia sido contemplado com recursos do programa estadual “Asfalto Novo, Vida Nova”, com liberação de R$ 364 mil divulgada em abril. A intermediação do repasse, segundo material institucional, foi novamente do deputado Cobra Repórter.

Do show ao silêncio 

A reportagem da Gazeta do Paraná entrou em contato com a dupla João Vitor e Gabriel por meio do número de telefone disponibilizado nas redes sociais oficiais do grupo. As perguntas encaminhadas buscavam esclarecimentos sobre os valores cobrados em diferentes apresentações contratadas por prefeituras do Paraná, os critérios utilizados na definição dos cachês, e eventuais vínculos com figuras públicas. Apesar da confirmação de recebimento dos questionamentos, até o fechamento desta matéria a dupla não havia se manifestado.

A nossa equipe também procurou o deputado Cobra Repórter, através do seu gabinete. No primeiro contato, ainda no mês de julho, fomos informados que o setor jurídico do gabinete entraria em contato, o que não ocorreu. Somente na última quarta-feira (06), ao insistir em um contato, conseguimos falar com Fábio, que se identificou como responsável pelas questões jurídicas. Segundo ele, até o momento o deputado não foi informado pelo Ministério Público sobre o inquérito e que o deputado não se manifestaria sobre o caso até que isso ocorresse. 

 

"Show completo"

De acordo com o secretário de comunicação do município de Primeiro de Maio, Marcelo Villa, o cachê de R$ 50 mil pago à dupla sertaneja João Vitor e Gabriel foi embasado por uma proposta comercial da própria empresa, acompanhada de documentos fiscais e de uma comparação com outros contratos. A Gazeta do Paraná mostrou, na edição de sábado, que em Ibiporã o mesmo show custo R$ 15,5 mil. Ibiporã, afirma ele, teria contratado um show reduzido, embora não tenha sido apresentada nenhuma evidência objetiva disso. A justificativa repousa sobre uma nota fiscal e uma interpretação livre dos termos “completo” e “reduzido”, que, ao que tudo indica, seguem sem definição técnica.

Apesar do custo elevado, a estrutura técnica — palco, som, iluminação e camarim — não estava inclusa no contrato. Segundo o município, essas despesas foram contratadas separadamente de outros fornecedores, o que, na prática, significa que os R$ 50 mil foram mesmo apenas pelo show em si — sem os adicionais que costumam encarecer uma produção.

A responsabilidade formal ficou a cargo da Secretaria Municipal de Agricultura, organizadora da 1ª AgroFest, onde o show foi realizado. O secretário Edilson Devequio, citado no processo como responsável pela pasta, também foi o articulador do evento. Quando perguntado se havia conhecimento da relação familiar entre Gabriel Gonçalves (da dupla) e o deputado estadual Cobra Repórter, a resposta foi simples: não sabiam. Só conheciam o trabalho da dupla pela rádio, redes sociais e plataformas de streaming. Nem mesmo o fato de o parlamentar ter subido ao palco e discursado durante o evento pareceu levantar qualquer suspeita sobre proximidade.

A prefeitura também afirmou que não foi notificada formalmente pelo Ministério Público ou pelo Tribunal de Contas até o dia 18 de julho, data em que a Gazeta do Paraná questionou oficialmente a administração sobre os fatos. Ainda assim, a gestão municipal diz que está “à disposição para quaisquer esclarecimentos” e que todos os documentos estão no portal da transparência — onde, curiosamente, a transparência sobre as justificativas técnicas do preço ainda não brilha com a mesma intensidade das luzes do palco. A prefeitura de Ibiporã também foi procurada por nossa equipe de reportagem, mas não retornou até o fechamento desta matéria.

“Orgulho do pai”

Gabriel Aparecido Gonçalves Silva parece ter herdado mais do que o sobrenome e o microfone do pai. Dono da voz que embala a dupla sertaneja João Vitor e Gabriel, ele também acumulou experiências no setor público e no mundo empresarial.

O nome artístico Gabriel Cobra Jr. aparece em vídeos, palcos e redes sociais desde 2019, quando a dupla iniciou oficialmente sua trajetória musical — amplamente impulsionada pelas mídias pessoais do pai, figura de destaque na política e no rádio paranaense. O deputado, aliás, não esconde o orgulho: tem promovido ativamente os shows do filho, publicando vídeos, fotos e mensagens de apoio, como “Muito orgulho ver meu filho fazendo sucesso e levando alegria nos palcos”, além de compartilhar novos lançamentos com elogios ao “trabalho, carisma e música boa”.

Mas a exposição do filho ultrapassa o universo musical. Entre março de 2019 e fevereiro de 2020, Gabriel ocupou cargo comissionado no Governo do Paraná, lotado na Secretaria da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos (SEJU). No período, seus vencimentos mensais giravam em torno de R$ 7 mil, como apontam os registros do sistema Meta4/RMIP.

Além da experiência como servidor, Gabriel integrou o quadro societário da empresa Rádio Cobra FM LTDA, com sede em Rolândia (PR), cidade base do grupo político de seu pai, ocupando a função de sócio-administrador. Dados atuais da Receita Federal, no entanto, não apontam mais Gabriel entre os sócios da empresa. Por outro lado, documentos do Ministério das Comunicações, anexados à base pública da radiodifusão, confirmam que Gabriel integrou a sociedade da rádio ainda em 2024, sendo inclusive listado como membro ativo no grupo responsável pela emissora. 

Com forte presença digital, Gabriel também é visto como rosto da rádio nas redes sociais e participa ativamente da divulgação de suas apresentações, inclusive de um feirão de veículos promovido pela Rádio. 

A nossa equipe também procurou o deputado Cobra Repórter, através do seu gabinete. No primeiro contato, ainda no mês de julho, fomos informados que o setor jurídico do gabinete entraria em contato, o que não ocorreu. Somente na última quarta-feira (06), ao insistir em um contato, conseguimos falar com Fábio, que se identificou como responsável pelas questões jurídicas. Segundo ele, até o momento o deputado não foi informado pelo Ministério Público sobre o inquérito e que o deputado não se manifestaria sobre o caso até que isso ocorresse. 

 

Não é só aqui

Nos últimos anos, enquanto professores lutam por reajustes, hospitais operam no limite e servidores convivem com congelamentos salariais, uma categoria tem vivido uma realidade bem diferente graças ao dinheiro público: a das duplas sertanejas. Brasil afora, uma avalanche de shows financiados por prefeituras tem chamado atenção não pela qualidade artística ou pelo retorno cultural, mas pelos cachês astronômicos pagos com verba pública, muitas vezes em cidades pequenas, com orçamentos apertados e sérias deficiências nos serviços básicos.

Em 2022, o tema ganhou projeção nacional quando vieram à tona casos emblemáticos como o de São Luiz (RR), que destinou R$ 1,2 milhão para contratar Gusttavo Lima, e Conceição do Mato Dentro (MG), que anunciou um show de R$ 1,2 milhão de Bruno e Marrone em meio à crise ambiental causada pela mineração. Em Pires do Rio (GO), uma cidade com cerca de 30 mil habitantes, um show de Zé Neto & Cristiano foi contratado por R$ 400 mil — valor que despertou a atenção de órgãos de controle, incluindo o Ministério Público.

As investigações revelaram uma prática sistemática de dispensa de licitação com base na alegação de exclusividade, prevista na Lei 14.133/2021. Na teoria, trata-se de um mecanismo legal para permitir a contratação direta de artistas consagrados que não possuem representantes múltiplos. Na prática, tornou-se uma brecha explorada para fechar contratos a valores inflados, muitas vezes com empresários intermediários, sem transparência e sem contrapartidas culturais mensuráveis.

O problema não está restrito aos grandes nomes. Em dezenas de municípios, duplas menos conhecidas passaram a faturar alto com apresentações bancadas por fundos públicos. A lógica é parecida: prefeitos e vereadores usam festas populares como vitrines políticas, apostando na associação com artistas para alavancar imagem pública. Em troca, repassam cifras muitas vezes desproporcionais à realidade do município, sem justificativa técnica e com pouca fiscalização.

O Tribunal de Contas da União (TCU) e os Ministérios Públicos Estaduais passaram a monitorar com mais rigor essas contratações a partir de 2022, após denúncias de que parte dos recursos utilizados para shows vinha de verbas originalmente destinadas à saúde, educação ou emendas parlamentares com finalidade social. Um relatório do MP em Goiás chegou a apontar “desvio de finalidade e potencial dano ao erário” como resultado direto da farra dos cachês.

Em comum, os contratos investigados envolvem: inexigibilidade de licitação sem comprovação robusta de exclusividade; ausência de estudos técnicos de preço ou comparação com apresentações similares; distribuição política de emendas parlamentares com finalidades recreativas e eleitorais; ligação pessoal ou política entre artistas, empresários e agentes públicos.

Na maioria dos casos, a falta de fiscalização permitiu que os cachês variassem até três vezes de um município para outro, mesmo com shows realizados em datas próximas e estrutura semelhante. Assim como no caso da dupla João Vitor e Gabriel, investigado pelo Ministério Público do Paraná, em que um show foi contratado por R$ 15,5 mil e, no mês seguinte, pela mesma prefeitura da região, por R$ 50 mil.

Embora os artistas frequentemente se esquivem de responsabilidade, alegando que não participam da formação de preços e apenas aceitam convites, o fato é que muitos deles têm fortes ligações com figuras políticas locais — seja por meio de parentesco, como no caso da dupla ligada ao deputado Cobra Repórter, seja por meio de apadrinhamento midiático ou troca de favores nas redes sociais.

As investigações estão apenas começando, mas os indícios apontam para um padrão que se repete em diferentes estados: a cultura da autopromoção com dinheiro público, disfarçada de investimento cultural. Para os órgãos de controle, o desafio será desmontar essa rede de contratos feitos "no gogó", onde o microfone serve não só para cantar, mas para fortalecer palanques.

Enquanto isso, a plateia — formada por contribuintes — paga a conta. E, na trilha sonora das investigações, a letra poderia muito bem ser: “Digita e apaga”... mas o rastro do suposto superfaturamento ficou.

Créditos: Da redação Acesse nosso canal no WhatsApp