Governo Ratinho Junior é acionado na Justiça por contrato milionário dos pátios do Detran
Ação judicial contesta licitação e acusa o governo de entregar a empresas privadas a função de apreender e guardar veículos
Por Gazeta do Paraná

Se fosse possível montar um pátio para guardar os bastidores do poder público, talvez lá coubessem não apenas carros apreendidos, mas também algumas verdades emboloradas, contratos empoeirados e silêncios barulhentos demais para não chamar atenção. No Paraná, a tentativa de conceder à iniciativa privada a gestão dos pátios do Detran virou exatamente isso: um espaço de espera, de incerteza, de perguntas que ainda não foram plenamente respondidas — embora a papelada diga o contrário.
A história começa com um leilão milionário e promessas de eficiência. A Concorrência Pública 02/2022, promovida pelo Detran-PR na B3, prevê a concessão de 44 pátios veiculares à iniciativa privada, divididos em dois lotes, por 20 anos. O valor global estimado ultrapassa R$ 330 milhões. O Consórcio Removcar Paraná venceu o Lote 1, e a Carvalho Engenharia & Gestão Ltda., o Lote 2. Antes que os contratos fossem assinados, porém, uma ação popular freou o processo.
O autor da ação é o deputado estadual Requião Filho (PT), que figura no processo como Mauricio Thadeu de Mello e Silva. Ele acusa a licitação de transferir ao setor privado funções típicas do poder de polícia do Estado, sem contrapartidas claras e com ausência de garantias ambientais. Requião também alerta para o risco da manutenção de pátios antigos e não licenciados, e para a transformação da apreensão de veículos em um negócio lucrativo, quando deveria ser uma medida excepcional.
A ação está sob responsabilidade do juiz Guilherme de Paula Rezende, da 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba. Ele optou por ouvir todos os réus antes de decidir sobre o pedido de liminar. E são muitos os réus: o processo inclui o governador Carlos Roberto Massa Júnior (Ratinho Júnior), João Carlos Ortega, Wagner Mesquita de Oliveira, Agide Eduardo Perin Meneguette, Luiz Augusto Silva, Everton Luiz da Costa Souza, Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro, Adriano Marcos Furtado e Ana Silvia Amorim Drewello. São réus também o Estado do Paraná, o Detran-PR e as empresas VIP Gestão e Logística S/A, Prisma Participações Ltda., Carvalho Engenharia & Gestão Ltda. e Energy Tecnologia de Automação S/A.
Enquanto a Justiça aguarda a localização de dois réus ainda não citados — as últimas tentativas ocorreram em 27 de março de 2025 —, a licitação segue sem assinatura de contrato. Mas o material reunido até aqui aponta que o debate extrapola a legalidade: ele alcança o histórico das empresas envolvidas e suas conexões.
Entre documentos e silêncios
A Energy, empresa curitibana fundada em 1996 com capital social de R$ 2.196.161,00, participou de dois consórcios distintos na licitação: Removcar e Vias Paraná. Embora habilitada para operar reboques e pátios, seu histórico é voltado a áreas como aluguel de equipamentos, geração de energia elétrica, tecnologia da informação e construção civil. Não possui trajetória consolidada em concessões públicas de pátios.
Na Ata nº 03 da Comissão Especial de Licitação do Detran-PR, consta a aceitação da Energy mesmo com falhas formais em seus documentos — como procurações sem assinatura e ausência de verificação digital. A mesma ata registra a desclassificação do Consórcio Mega Pátio por apresentar uma fiança bancária sem QR code funcional e sem chancela de instituição autorizada pelo Banco Central.
A VIP Gestão e Logística S/A, conhecida como Vip Leilões, também participou de dois consórcios simultaneamente: Removcar Paraná e Vias Paraná. Já a Prisma Participações Ltda., com capital de R$ 475 mil e sede em Salvador (BA), tem como sócia a Villagio Participações S/A. Ambas dividem o mesmo endereço e são comandadas por Adriano Mota de Araújo Costa, que figura como sócio, presidente, diretor e conselheiro de administração.
Segundo a Receita Federal, a atividade principal da Prisma é a incorporação imobiliária, embora tenha CNAEs para reboque e estacionamento. A Villagio atua na gestão patrimonial e imobiliária. Nenhuma das duas possui histórico público conhecido na gestão de pátios veiculares.
Denúncia no Maranhão
A Vip Leilões carrega um histórico de denúncias no Maranhão. O deputado estadual Eric Costa (PP) afirmou que a empresa operava apenas quatro pátios, embora recebesse do Detran-MA como se administrasse quinze. Isso obrigava cidadãos a percorrer longas distâncias, pagar por guinchos e, em muitos casos, perder seus veículos antes de qualquer chance de recuperação. “Esta Casa não pode ficar de braços cruzados enquanto uma empresa privada lesiona o contribuinte maranhense”, disse Costa, em plenário, ao anunciar o protocolo de uma ação popular e a articulação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o contrato.
O que diz o governo
Em nota oficial, o Governo do Estado do Paraná declarou: “O processo de contratação da gestão de pátios veiculares foi feito na B3 e contou com ampla transparência pública. Todas as regras de participação em uma licitação foram respeitadas e o resultado dos dois lotes já foi homologado. O processo está tramitando normalmente e o próximo passo é a assinatura dos contratos. As demandas judiciais sobre o processo estão sendo esclarecidas ao Poder Judiciário”.
A reportagem da Gazeta do Paraná procurou todas as empresas que integram o Consórcio Removcar para solicitar esclarecimentos. Até o fechamento desta edição, nenhuma delas respondeu. Enquanto o pátio jurídico não se esvazia, a licitação permanece parada. Mas um detalhe chama atenção e será tratado na próxima matéria: a Energy, que surge como participante da disputa, pode ter vínculos diretos com uma empresa já conhecida por contratos suspeitos com o poder público.
Ministério Público
A Gazeta do Paraná não encontrou, até o momento, indícios de qualquer iniciativa do Ministério Público do Paraná em relação à licitação bilionária dos pátios do Detran. Diante do interesse público envolvido e das suspeitas apontadas em ação popular — como falhas documentais e vínculos empresariais controversos —, resta a pergunta: algum promotor tomará providências? A moralidade administrativa exige mais do que espera.