Ponto 14

Sobrevivente da boate Kiss reconstrói a vida nos 10 anos após tragédia: 'O psicológico a gente nunca vai curar'

Por Giuliano Saito


Fisioterapeuta Jéssica Duarte, de 30 anos, teve cerca de 40% do corpo queimado na tragédia. Na época do acidente, ficou por 25 dias na UTI. 10 anos depois do incêndio, nenhum réu foi culpabilizado. Jéssica Duarte tinha 20 anos na época do acidente. Depois de se recuperar fisicamente, se formou e constituiu família Arquivo pessoal A fisioterapeuta e consultora em amamentação Jéssica Duarte, de 30 anos, lembra com clareza do momento em que descobriu que a boate Kiss estava em chamas. Ela é uma das sobreviventes da tragédia. “A gente tava no banheiro e quando a gente saiu, a gente viu uma ‘muvuca’. A gente achou que era briga. Você não enxergava claramente que era fogo”. Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Telegram Jéssica, que atualmente vive em Curitiba, estava Kiss com o então namorado. Ele foi uma das 242 pessoas que morreram no acidente. Ela, um dos 636 feridos. Jéssica teve cerca de 40% do corpo queimado e, atualmente, carrega nos braços, pernas, costas e na mente as marcas da tragédia. Nesta sexta-feira (27), a tragédia da Kiss completou 10 anos. O acidente aconteceu em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Hoje, nenhum réu está preso. Quatro pessoas chegaram a ser condenadas, mas o júri foi anulado. Ao longo da última década, Jéssica precisou aprender a lidar com o trauma e reinventar a vida. Ao longo da última década ela mudou de estado, se formou e constituiu família. Leia também: Boate Kiss: tragédia completa 10 anos; relembre incêndio e veja lista de vítimas Série documental: Globoplay relembra tragédia Relembre cronologia do caso Boate Kiss: entenda em 5 pontos por que o júri foi anulado pela justiça do RS O resgate de Jéssica Jéssica conta que foi resgatada por uma pessoa que não conhecia na época. “O banheiro era perto da porta de saída. A gente foi indo com o fluxo. Só que daí nisso, o primo dele [do namorado], nos avisou que não era briga, era fogo. Eu não dei conta, acabei ficando pra trás e nisso eu me perdi e logo perdi a consciência”. A fisioterapeuta recebeu os primeiros socorros ainda na região da boate e depois foi levada ao hospital. Jéssica lembra que ficou 30 dias internada em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) foram 25 dias. Na recuperação, disse que sentia muita dor e que não conseguia "apagar" com os medicamentos. Depois da primeira fase da recuperação, se mudou para região de Curitiba, em Colombo, onde os pais moravam. Apesar das marcas na pele terem cicatrizado, a mente ainda precisa ser tratada. Jéssica explicou que consegue separar os acontecimentos da boate Kiss de atividades do cotidiano, mas fala que desenvolveu alguns gatilhos, como medo de perder pessoas próximas. “O psicológico a gente nunca vai curar. O trauma convive com a gente. Hoje no dia a dia eu não criei nenhuma fobia, mas sinto muito medo, às vezes, de perder as pessoas como eu perdi. Eu quero estar sabendo toda hora onde está, se chegou. Se eu não estou junto eu me sinto um pouco mais insegura. Às vezes tenho palpitação”. ‘Parece que foi em vão’ Incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013 AFP Sobre a falta de responsabilização de culpados pelo incêndio, Jéssica disse que "parece que foi em vão" tudo o que as vítimas sofreram. “Ter morrido tanta gente, ter ficado tantas pessoas, com tantas sequelas, parece que foi em vão. Claro que eu tenho certeza que muitas pessoas tão usando isso como aprendizado, e muita coisa foi pra frente e evoluiu em relação a lei. Mas o fato de você não ter alguém responsável, ou melhor, eram muitas pessoas responsáveis por um crime desse, e não ter ninguém dito culpado me parece ser banal”. A primeira década da tragédia na boate virou tema de série documental da Globoplay e de série da Netflix. Jéssica acredita que a história continuar sendo abordada ajuda que as vítimas não caiam no esquecimento. Sobre as produções, ela disse que pretende assisti-las quanto estiver preparada. “Ver aquilo numa filmagem tão real eu acho que vai me despertar algumas coisas que talvez nesse momento eu não esteja pronta, mas eu vou assistir. Porque faz parte da minha história. O mundo todo sabe mais da minha história do que eu, porque depois disso que eu fiquei inconsciente alguns dias, eu fui saber e ver coisas muito tempo depois”. 'Sou muito grata por ter ficado' Jéssica e a família Arquivo pessoal Jéssica acredita que teve uma segunda chance. Depois do acidente, ela lembra que precisou construir a vida do zero, mas reforçou que é grata pela nova oportunidade que recebeu. “Existe lado bom até na tragédia. Me trouxe para um lugar que eu não viria se não fosse necessário, tive que começar tudo do zero e hoje eu tenho uma filha, sou casada, sou feliz, tenho uma profissão. Isso tudo vem, infelizmente, de uma consequência. Antes não tivesse vindo, mas vem em consequência de tudo me aconteceu [...] Então eu sou muito grata por ter ficado, pela nova oportunidade que foi me dada”. A gratidão pela segunda chance também se manifesta, em homenagem, no nome da filha. Zoe, de 1 ano e 4 meses, recebeu um nome que significa vida. "É muito fácil hoje enxergar o que estava incorreto, mas lá no dia, antes de nada ter acontecido, a gente não tinha essa dimensão. Hoje as pessoas podem olhar e perceber: ‘cara, é isso que eu tenho que observar quando eu tiver em um ambiente como esse’, e se ajudar algumas pessoas a começarem a olhar pra isso, vai ter valido a pena o que a gente passou". *Com colaboração de Caroline Maltaca, assistente de produtos digitais do g1. Vídeos mais assistidos do g1 PR: Veja mais notícias do estado em g1 Paraná.