O Ideas invisível: como um instituto nacional orbitou o Hospital Micheletto sem contrato
A passagem de gestores ligados ao Ideas revela como o instituto se insere na saúde pública sem aparecer nos contratos, mas influenciando decisões centrais
Créditos: Reprodução/Google Street View
Em Assis Chateaubriand, no Oeste do Paraná, o Hospital Beneficente Moacir Micheletto ocupa um lugar central na vida da cidade. É ali que a população busca atendimento pelo Sistema Único de Saúde, é ali que se concentram expectativas, angústias e demandas que ultrapassam os limites do município. Como toda instituição filantrópica que depende de recursos públicos, o hospital vive sob o equilíbrio delicado entre a necessidade de manter serviços funcionando e a obrigação de prestar contas à sociedade.
Nos últimos anos, esse equilíbrio passou a ser observado com mais atenção. A gestão do Micheletto entrou no radar não apenas por suas dificuldades financeiras ou pelos desafios comuns à saúde pública, mas também pelos nomes que passaram a circular em torno de suas decisões administrativas. Entre esses nomes, um em especial começou a se destacar: Rodrigo Massaroli.
Massaroli assumiu função de gestão no Hospital Micheletto e, à primeira vista, poderia ser visto apenas como mais um gestor hospitalar em uma cidade do interior. Aos poucos, porém, seu perfil revelou uma trajetória que não se limita a Assis Chateaubriand. Massaroli mantém atuação acadêmica em Santa Catarina, como professor universitário, e possui vínculos profissionais que extrapolam o contexto local, o que, como consequência - segundo fontes que ouvimos na cidade - o levou a pouco permanecer no hospital enquanto esteve à frente dele. É a partir desses vínculos que um outro nome começa a surgir, ainda de forma discreta, mas recorrente: Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde, o Ideas.
Esse surgimento não se dá nos contratos do hospital. Não está nos convênios firmados com o Governo do Estado, nem nos documentos oficiais que regem o funcionamento do Micheletto. O Ideas não aparece como gestor formal, prestador de serviços ou parceiro institucional da unidade, em nenhum momento. Sua presença se insinua de outra forma: pela trajetória de quem ocupa cargos estratégicos. Embora nossa equipe não tenha identificado um único documento que relacione o hospital ao Ideas, bastou uma ligação para o hospital para confirmar a presença do Ideas em um passado recente. Ao pedirmos para fala com “alguém que representasse o instituto dentro do hospital”, tivemos como resposta imediata o nome de Massaroli e a informação de que ele - e o instituto - havia saído do hospital há cerca de 6 meses e que, neste momento, é Rodrigo Furlan que está à frente da instituição. Rodrigo Furlan era até então o secretário de Saúde do município, escolhido à dedo pelo prefeito Marcel Micheletto. Ao designar Furlan para a gestão do hospital que leva o nome de seu pai, o prefeito fez uma nova escolha à dedo para a pasta da Saúde: sua mulher, Franciane Micheletto (também vice-prefeita). Nossa equipe de reportagem tentou contato com Furlan a fim de obter esclarecimentos sobre a “passagem” do Ideas por Assis, mas até o fechamento desta matéria, nossas mensagens não haviam sido respondidas.
O instituto Ideas
É nesse ponto que a história deixa de ser apenas local. A ligação entre Rodrigo Massaroli e o Ideas levanta uma pergunta que vai além do Hospital Micheletto: que instituto é esse que surge no entorno da gestão hospitalar, mesmo sem figurar nos papéis oficiais? E, sobretudo, por que o seu nome se repete em diferentes contextos da saúde pública brasileira?
Para responder a essas perguntas, é preciso acompanhar o caminho profissional de Massaroli e, a partir dele, revelar a estrutura, o alcance e o peso institucional do Ideas — uma entidade que se consolidou nacionalmente na gestão da saúde pública e que, mesmo quando não aparece formalmente nos contratos, acaba projetando sua sombra sobre decisões locais.
É esse percurso, que começa em Assis Chateaubriand e avança para além das fronteiras do município, que esta reportagem passa a contar. O vínculo de Rodrigo Massaroli com o Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde não conduz a uma entidade local ou de atuação pontual. O Ideas é uma associação privada com sede em Florianópolis, criada para operar na área da saúde pública em escala ampla, oferecendo ao poder público um modelo de gestão terceirizada de serviços hospitalares e assistenciais.
Ao contrário de hospitais filantrópicos tradicionais, cuja atuação costuma se limitar a uma cidade ou região, o Ideas foi estruturado desde cedo para operar simultaneamente em diferentes territórios. Essa opção se materializa em sua forma de organização jurídica: o instituto mantém uma única entidade-mãe, mas atua por meio de diversos CNPJs ativos, distribuídos em vários estados do país.
Os documentos levantados nesta apuração mostram registros do Ideas em Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará. Esses CNPJs não representam empresas independentes, mas filiais da mesma associação, abertas para permitir a contratação direta com municípios e estados específicos, respeitando exigências administrativas locais. Em alguns municípios, há mais de um CNPJ ativo, o que reforça a lógica de fragmentação territorial da atuação.
Esse desenho tem um efeito concreto: ele facilita a expansão e, ao mesmo tempo, dificulta a leitura externa da estrutura. Para quem observa de fora, o Ideas pode parecer um conjunto difuso de entidades; na prática, trata-se de uma organização única, com comando concentrado.
Essa concentração aparece com nitidez na matriz. É ali que se localiza a direção formal do instituto, exercida por um núcleo restrito de dirigentes, entre eles Diego Gotardo, presidente, e Sandro Natalino Demetrio, diretor. São esses nomes que respondem institucionalmente pelo Ideas. Nas filiais, contudo, essa cadeia de comando não se apresenta de forma explícita nos registros públicos, o que é permitido pela natureza jurídica de associação privada, mas reduz a transparência sobre a responsabilização local.
Com essa estrutura, o Ideas pode atuar de maneiras distintas conforme o contexto. Em alguns casos, assume formalmente a gestão de hospitais inteiros, por meio de contratos públicos de longo prazo, tornando-se responsável direto pelo funcionamento da unidade. Em outros, seus quadros técnicos e gestores passam a ocupar posições estratégicas em instituições que mantêm convênios próprios com o poder público, sem que o instituto figure nos contratos.
É essa segunda forma de atuação que ajuda a entender por que o nome do Ideas surge em Assis Chateaubriand sem aparecer nos documentos do Hospital Micheletto. A ligação não se dá por instrumento jurídico, mas pela circulação de pessoas que integram ou orbitam a estrutura do instituto e passam a exercer funções decisórias em hospitais filantrópicos.
Práticas questionáveis
À medida que o Instituto Ideas passou a assumir contratos de gestão hospitalar em diferentes regiões do país, começaram a surgir relatos semelhantes, vindos de contextos distintos, mas com um mesmo pano de fundo: dificuldades financeiras recorrentes, atrasos no pagamento de trabalhadores e instabilidade operacional. Esses relatos não se concentram em um único estado ou contrato específico, mas aparecem de forma reiterada em unidades administradas pelo instituto.
Em hospitais sob gestão formal do Ideas, como no caso do Hospital Regional de Toledo, servidores e profissionais relataram atrasos salariais, incertezas quanto ao pagamento de plantões e dificuldades na manutenção de equipes completas. Em alguns episódios, a tensão chegou ao ponto de mobilizar o Ministério Público e gestores municipais, que passaram a intermediar negociações para evitar a interrupção de serviços essenciais.
Esse padrão também se manifesta em outras localidades onde o Ideas atuou como gestor hospitalar, com registros de reclamações de funcionários, greves iminentes e necessidade de renegociação de contratos. Embora cada caso tenha suas particularidades, o elemento comum é a fragilidade na relação trabalhista, que acaba recaindo diretamente sobre o funcionamento das unidades de saúde.
Denúncias cercam o Ideas em diferentes estados
À medida que o Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde ampliou sua atuação pelo país, seu nome passou a aparecer não apenas em contratos de gestão hospitalar, mas também em procedimentos de apuração conduzidos por órgãos de controle. Em diferentes estados, denúncias relacionadas à execução de contratos, à destinação de recursos públicos e à gestão financeira de unidades de saúde levaram o instituto ao centro de investigações administrativas e criminais.
O caso de maior repercussão envolve Santa Catarina, estado onde o Ideas mantém sua sede e concentra parte relevante de sua estrutura administrativa. Em maio de 2025, a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Polícia Federal deflagraram uma operação conjunta para apurar suspeitas de desvio de recursos públicos na área da saúde, envolvendo um contrato estimado em R$ 196 milhões. A investigação teve como foco a gestão de um hospital infantil no estado e alcançou entidades privadas responsáveis pela administração de serviços financiados com recursos federais.
De acordo com as informações divulgadas oficialmente, os investigadores apuram possíveis irregularidades na aplicação de recursos do SUS, incluindo indícios de sobrepreço, direcionamento de despesas, falhas na comprovação de serviços prestados e fragilidades nos mecanismos de controle interno. A apuração também busca identificar a eventual participação de gestores públicos e privados na estruturação do modelo investigado.
O Instituto Ideas aparece no contexto dessa investigação por integrar o conjunto de entidades privadas que operam contratos vultosos na saúde pública catarinense. Até o momento, não há condenações, e o instituto nega irregularidades. Ainda assim, o fato de ter sido alcançado por uma operação conduzida simultaneamente pela CGU e pela Polícia Federal coloca o Ideas em um patamar distinto de escrutínio institucional.
Antes mesmo da operação em Santa Catarina, o Ideas já havia sido alvo de questionamentos públicos em outras unidades da federação. No Amazonas, parlamentares estaduais levantaram dúvidas sobre a contratação do instituto para gerir hospitais, apontando preocupações com o modelo de terceirização adotado e com a transparência dos contratos. No Rio Grande do Sul, especialmente em Caxias do Sul, contratos firmados com o Ideas entraram no debate político local, chegando a ser citados em discussões sobre pedidos de cassação de prefeito, em razão da ausência de licitação e da forma de contratação.
No Paraná, embora não haja operação policial direcionada especificamente ao Ideas, episódios envolvendo hospitais sob sua gestão direta ou indireta alimentaram críticas ao modelo. O caso do hospital de retaguarda de Cascavel, que chegou a operar com apenas um trabalhador da limpeza, apesar de previsão contratual muito superior, expôs falhas na execução dos serviços e reforçou a percepção de precarização operacional. Em Toledo, dificuldades financeiras e atrasos no cumprimento de obrigações trabalhistas levaram o Ministério Público a intervir como mediador em negociações entre o instituto, trabalhadores e o poder público.
