Indígenas graduados pela UNILA compartilham sonhos e conquistas
Para celebrar 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, estudantes que passaram pela Universidade falam de sonhos, de desafios, inspirações e conquistas
Por Da Redação

O número de estudantes indígenas no ensino superior vem apresentando um grande crescimento. No Brasil, o número de indígenas matriculados em 2021 representava um crescimento de 374% em relação a 2011, segundo dados do Instituto Semesp. Na UNILA não é diferente. “Subiu notavelmente o número de estudantes indígenas na UNILA”, comenta a secretária de Ações e Afirmativas e Equidade, Patricia Regina Cenci Queiroz.
Além de atender a Lei de Cotas, de 2012, que reserva vagas para estudantes indígenas, a UNILA também tem um processo seletivo específico para indígenas aldeados. Na primeira seleção, em 2019, foram selecionados 17 estudantes. No ano passado, foram 71, mas houve um recorde em 2023, com 98 aprovados. “A UNILA sempre teve uma presença indígena, principalmente da América andina, mesmo anteriormente a 2019, mas essa presença não era, quantitativamente falando, tão significativa quanto é hoje. Essa presença, hoje, está em todos os espaços, nas línguas faladas nos corredores, no vestuário dos estudantes, nas práticas culturais que eles trazem”, pontua, lembrando que também há o ingresso de indígenas por meio do processo seletivo internacional, que é de ampla concorrência e realizado desde o início das atividades da UNILA, em 2010.
Com o crescimento desse grupo de estudantes, crescem também os desafios que têm de ser enfrentados pela instituição. “Os desafios são imensos”, diz Patrícia. “A UNILA é, de muitas formas, para além de uma universidade intercultural", enfatiza. No entanto, ainda é necessário um amadurecimento." Trazemos estudantes indígenas de diferentes locais, de diferentes países, diferentes vivências, de experiências educacionais muito diversas, mas trazemos para uma universidade tradicional”, analisa.
Para vencer esses desafios, diz ela, estão sendo desenvolvidas ações, programa e projetos em várias macrounidades como a Pró-Reitoria de Graduação, a Pró-Reitoria de Assistência Estudantil e a Comissão de Acesso e Permanência dos Povos Indígenas. “Hoje temos um ingresso significativo de estudantes indígenas, mas o número de formados é ainda muito baixo”, avalia. “Por isso, temos de comemorar cada estudante indígena que consegue completar o seu processo formativo. A formatura é uma vitória não só daquele estudante, mas de todos os povos originários de uma maneira geral, e uma vitória também da universidade que, de certa maneira, está cumprindo seu papel, sua missão com esses grupos”, destaca Patrícia Queiroz.
Muito a conquistar
Elma Julia Tataendy Martines está concluindo o curso de Geografia – licenciatura e, como outros estudantes indígenas que já conquistaram o grau superior, é um exemplo de determinação e resistência. Ela conta que a língua portuguesa e o uso de equipamentos eletrônicos foram grandes desafios em sua jornada na UNILA. “Para mim, um dos principais desafios foi a interpretação das coisas, que eram muito formais e eu não tinha todo o conhecimento. E eu precisava pesquisar toda hora o que eram as palavras, o que significavam os diálogos. As línguas eu não entendia muito bem para me comunicar. Foram desafios muito grandes pra mim”, pontua.
Quando entrou no curso, ela não tinha celular ou notebook para as tarefas que exigem esses equipamentos. “Tinha de fazer tudo na escola [do Tekoha]. Mas pouco a pouco, fui me informando e fazendo pesquisas. Eu fui tentando amenizar essas minhas dificuldades para não sofrer muito. Me agoniava eu não saber das coisas. Eu procurava as pessoas que sabiam. Perguntava para minha mãe o que era. Essas coisas foram muito desafiadoras”, completa. A mãe da estudante, Delmira de Almeida Peres, fez Pedagogia e, posteriormente, o mestrado Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (IELA) na UNILA.
Mesmo com muitos desafios, Elma conseguiu manter-se no curso. Seu trabalho de conclusão trata de sua experiência na educação indígena e suas relações com a educação e o conhecimento não indígena. “Tive muitas preocupações, mas eu me desafiei a continuar, provando a mim mesma que sou capaz e posso concluir meu curso tão desejado, dos sonhos que tenho. Me sinto muito orgulhosa de mim e de que sou capaz. Tenho muitas coisas para conquistar.”
Sua mãe e também o pai, Luiz, ambos professores no Tekoha Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, são inspirações para Elma. “Minha mãe foi uma das primeiras a se formar em nossa comunidade. Ela sempre foi uma batalhadora. Sempre foi uma inspiração”, comenta. Delmira é professora, pedagoga e atua como vice-diretora no Colégio Estadual Indígena Teko Ñemoingo, no Ocoy. “Sempre deu aula. Ela teve todas as dificuldades, mas ela sempre mostrou os conhecimentos dela: os indígenas e os não indígenas e isso foi uma das motivações para mim”, diz Elma. “Como filha de uma professora e de um professor, me sinto na obrigação de ser também uma professora que possa trazer conhecimentos e a cultura não indígenas para minha comunidade. E levar esses dois caminhos para eu poder trazer e levar cultura indígena para comunidades não indígenas.”
Ações afirmativas
Egressa do bacharelado em Ciências Biológicas – Ecologia e Biodiversidade, Carolina Cristal Goycolea Vega é a primeira estudante do povo Mapuche, do Chile, a concluir uma graduação na UNILA. Ela colou grau no início deste ano. Seu desempenho garantiu a ela aprovação no Mestrado em Zoologia da Universidade Federal de Mato Grosso, antes mesmo da sua graduação.
Ela conta que o acesso de indígenas ao ensino superior em seu país é muito difícil. “São uma ou duas vagas para toda a universidade. Isso quando são ofertadas”, aponta. “No Chile não tem tanta política de ação afirmativa como aqui no Brasil. Eu sempre falo isso para a minha família porque na UNILA eu entrei pelo Processo Seletivo de Indígenas e aqui na UFMT, onde estou fazendo mestrado agora, também entrei por cota de ações afirmativas.”
Carolina não enfrentou grandes dificuldades durante seu curso, a não ser com a língua. Ela fala espanhol e, no início, enfrentou dificuldades com o português. “A língua, eu acho que foi a principal dificuldade porque não sabia nada de português. E também a pandemia, mas eu fiquei no Brasil. Eu sabia que tinha que estudar. Minha mãe sempre me falou que se a gente não estuda não pode ser uma mulher independente”, conta ela, que sempre teve boas notas.
O povo Mapuche, explica Carolina, é majoritário entre os povos originários do Chile. “O povo do Chile no geral tem muito costumes que são do povo Mapuche. É por isso que a cultura chilena está tão impregnada de coisas que são do meu povo”, comenta, lamentando que a língua mapuche esteja se perdendo, principalmente, nas maiores cidades. “É como o guarani, [os mais velhos] tentam não ensinar. A língua vai se perdendo. É para que as pessoas fiquem mais integradas à sociedade”, analisa.
Ela escolheu estudar na UNILA porque avaliou o projeto pedagógico do curso (PPC). “Eu gostava da parte básica da biologia. Foi por isso que escolhi a UNILA, na verdade, porque o PPC era muito abrangente, muito bom.” Fazendo o mestrado, Carolina não enxerga uma volta ao seu país tão cedo. “Eu sempre falei que se voltasse era só com doutorado porque lá é super difícil fazer pesquisa. E eu estou gostando muito daqui. Estou conseguindo trabalhar com o que quero trabalhar e não sei se conseguiria fazer isso no Chile.”
Transformar a comunidade
Da comunidade aymara Carmen Lipe, no interior da Bolívia, Eugenio Quispe Pari chegou à UNILA com um objetivo claro: mostrar a cultura e os desafios de sua comunidade. Ele é graduado em Ciência Política e Sociologia - Sociedade, Estado e Política na América Latina, e mestrando em Integração Contemporânea da América Latina. “Eu cresci numa região marcada por desafios sociais e pela riqueza cultural dos povos andinos. Eu queria transmitir essa riqueza cultural, falar também desses desafios sociais da minha comunidade na academia. Tem algumas pesquisas, mas não são de pessoas que moram ali. É uma visão externa. Eu queria entender como as estruturas sociais podem ser transformadas na minha comunidade. E entender as dinâmicas da integração na América Latina”, comenta.
Ele ouviu falar sobre a UNILA em uma palestra sobre oportunidades de estudos superiores no exterior e, nas pesquisas que fez, descobriu um vídeo sobre o PSIN com um link para a inscrição. O vídeo, com depoimentos de estudantes de diferentes povos originários, foi o estímulo que faltava para que ele se decidisse a vir para Foz do Iguaçu. Ele começou seus estudos em 2022.
Com um objetivo de estudos definido, como não podia deixar de ser, seu TCC versa sobre sua comunidade. “Meu objetivo sempre foi unir a minha vivência originária e rural aos estudos acadêmicos e à diversidade e justiça social. Meu TCC é sobre tudo isso. Sobre a resistência do meu povo, como mantemos a nossa cultura viva no século 21, em meio à globalização”, relata.
Sobre o acesso e permanência de estudantes indígenas no ensino superior, Eugênio aponta duas barreiras: a dificuldade de deslocamentos dos estudantes de suas comunidades até a UNILA e a separação do grupo familiar. “A primeira coisa que eles perguntam, no primeiro contato que a gente faz, é se a universidade vai pagar os custo das viagens”, conta, lembrando que a maioria dos estudantes não consegue arrecadar recursos no espaço de tempo entre a aprovação no processo seletivo e o início das aulas.
Além disso, destaca ele, são muito jovens e isso impacta diretamente quando de se trata do afastamento da família. “Eles não conseguem ficar. Chegam aqui e não conseguem se virar e voltam para o seu país. Porque têm saudade da família. Muitos estão saindo pela primeira vez de casa, deixando a família para ficar sozinhos.”
A expectativa de Eugenio é iniciar um doutorado logo após concluir o mestrado, aprofundando os conhecimentos que vem adquirindo. “Agora, no mestrado, estou conseguindo entender como posso trabalhar com o financiamento internacional, por exemplo, para que a minha comunidade seja transformada, para que as crianças da minha comunidade tenham uma educação muito boa, que elas tenham a oportunidade de sair, assim como eu, para estudar o que quiserem”, aponta.
“Eu sou muito ciente de que a educação é uma ferramenta de transformação. Espero fortalecer as comunidades marginalizadas – uma delas é a minha. Eu quero gerar impacto ali com conhecimento que adquiri, gerar um impacto concreto nas comunidades marginalizadas. Tudo isso alimenta meu propósito de não parar o trabalho que estou fazendo, de adquirir conhecimento que beneficie os povos originários e os povos das periferias. Sejam periferias geográficas ou sociais.”
"A UNILA me deu vida"
A estudante do povo Kolla e oriunda de Salta, na Argentina, Analia Samanta López chegou à UNILA em 2019, para estudar Saúde Coletiva inspirada na história de seus ascendentes, dedicados às práticas da saúde de diferentes formas: a mãe, enfermeira [sem formação superior]; tias e tios também enfermeiros ou agentes comunitários; avó e bisavó, curandeiras que usavam o conhecimento ancestral. “A maioria das mulheres da minha família têm conhecimento sobre saúde. Todos temos esse amor pelo cuidado do outro. Passar pela Universidade foi unir o que já vem do nosso povo com o que tem na academia”, diz ela.
Ela encontrou a UNILA ao pesquisar o termo “saúde coletiva”, tema que sempre atraiu sua atenção. “Encontrei na internet o convite ‘venha romper fronteiras’ uma semana antes do final do prazo de inscrição. Fiz minha inscrição no último dia. Não acreditava que fosse selecionada. Mas fui chamada. Foi na manhã de 21 de setembro de 2018 quando soube. Me lembro bem porque foi no mesmo dia em que descobri que estava grávida.”
E grávida ela chegou a Foz do Iguaçu. Imigração, juventude, gravidez, desconhecimento do idioma e dinheiro na medida formavam o cenário de sua chegada. “Olhando para trás foi mesmo muita coragem”, comenta. “Foi muito difícil. Foi preciso muita coragem para vir, mas o Brasil tem muita oportunidade e aqui, na fronteira, temos muitos direitos como migrantes e como estudantes. A Universidade dá muito apoio ao imigrante e aos povos indígenas. Foi difícil, mas tive muita ajuda”.
Para ela, a principal dificuldade foram as doenças pelas quais passou durante a gestação, mas encontrou anjos pelo caminho: da ajuda na primeira visita a um posto de saúde às condições específicas nas aulas, com atividades que ela fazia em casa, assim como as provas de várias disciplinas. “Passei por muitas dificuldades, mas a UNILA me deu vida.”
Ela, que recebeu seu diploma na última quarta-feira (16), começa agora o mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento, com o desejo de se tornar docente e pesquisadora, seguindo o exemplo de seus professores. “Para mim, significa um salto. Abriu uma porta que estava fechada para nós.”
Sobre o acesso ao ensino superior para os povos indígenas, Analia diz que as políticas públicas são um exemplo. “Existe uma dívida muito grande com os povos originários, com os negros. Aqui no Brasil, pude ver conquistas com políticas para tentar diminuir essa dívida e, de alguma forma, fazer com que os povos indígenas, que foram afastados de seus direitos, hoje possam ingressar na Universidade. A política não fica só no papel, ela é real, existe.”