Ponto 14

Homem que usou anestésico em cliente para fazer tatuagem é indiciado por homicídio culposo e falsidade ideológica

Por Giuliano Saito


David Luiz Porto Santos morreu em 2021, em Curitiba, logo após sessão; laudo sugere intoxicação por lidocaína. Anvisa diz que tatuadores não podem utilizar medicação. g1 aguarda retorno da defesa do tatuador. Polícia investiga morte de homem durante sessão de tatuagem, em Curitiba O tatuador José Manoel Vieira de Almeida, que era investigado pela morte de David Luiz Porto Santos, foi indiciado nesta quinta-feira (23) por homicídio culposo, quando não há intenção de matar, e falsidade ideológica. O relatório é do delegado Wallace de Oliveira Brito, do 6º Distrito Policial em Curitiba. Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Telegram David Luiz morreu aos 33 anos, em 2021, após uma sessão de tatuagem para "fechar" o braço esquerdo. Segundo a polícia, José Manoel passou em David a substância anestésica lidocaína, para alívio temporário de dor. Segundo laudo do Instituto Médico-Legal (IML), a causa da morte de David é indeterminada, mas exames periciais sugerem "intoxicação exógena por lidocaína”. O g1 aguarda retorno da defesa do tatuador. Em 2021, pouco após a morte, José Manoel foi ouvido e na ocasião informou que utilizou a medicação em David apenas uma vez, a pedido do próprio cliente, próximo ao final da sessão. A esposa da vítima nega a versão, afirmando que o tatuador usou a medicação em spray sem avisar. Segundo a investigação, o anestésico tinha 20% de concentração. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o uso de lidocaína exige receita médica e tatuadores não possuem autorização para ministrar a substância, mesmo as de uso tópico. No relatório do caso, o delegado Wallace disse José Manoel violou "o dever de cuidado". O homem vai responder em liberdade. "Relata, em síntese, que o marido estaria bem sem apresentar reclamações de dor ou de outro sintoma, até o momento em que recebeu a dosagem do anestésico, quando, então, passou a apresentar os sintomas descritos no laudo pericial que culminaram na sua morte", diz trecho do relatório do delegado. A esposa de David contou à polícia que, pouco após ter contato com a lidocaína, o marido teve várias reações, como pressão baixa, palidez, batimento cardíaco acelerado, fala embaralhada, veias dilatadas, perda de sentido e convulsão. Falsidade ideológica De acordo com o delegado Wallace, o indiciamento por falsidade ideológica ocorre porque José Manoel não confirmou como conseguiu a receita para manipular a medicação em uma farmácia da capital. No rótulo do medicamento, que foi apreendido na época, constava o registro de uma médica veterinária, que foi ouvida e negou conhecer o tatuador. Em depoimento à polícia também neste ano, a médica veterinária também destacou que a a profissão dela não permite prescrição de remédio para humanos. Segundo rótulo, spray de lidocaína estava no prazo de validade quando foi utilizado Reprodução No dia 16 de fevereiro deste ano, José Manoel foi novamente chamado para prestar depoimento e esclarecer a origem da medicação utilizada em David, mas segundo o delegado, o homem utilizou o direito de permanecer em silêncio. A partir do indiciamento, o relatório será submetido ao Ministério Público, que pode, ou não denunciar o tatuador à Justiça. Não há prazo para o órgão deliberar sobre o assunto. Quando o caso veio a público, neste ano, a defesa do tatuador afirmou não houve irregularidade na aplicação do medicamento e destacou que José Manoel tem sete anos de atuação no mercado. Leia também: Briga: Homem agredido por cantor tem morte cerebral confirmada Buscas: Mãe de estudante brasileiro desaparecido no Paraguai fala sobre buscas: 'Não tenho coragem para desistir' Assista: Passageiros registram baratas dentro de ônibus em Curitiba Estado de saúde da vítima David Luiz tinha 33 anos. Ele chegou a ser socorrido, mas não resistiu Reprodução O relatório do IML, um dos documentos que respalda o indiciamento, cita que David tinha bom desenvolvimento muscular e bom estado de nutrição, mas que, após a morte, apresentou mudanças corporais como congestão pulmonar e coração aumentado. O documento não detalha se o motivo foi a lidocaína. O tatuador afirmou que antes de fazer a tatuagem em David, o cliente assinou um termo de consentimento, no qual não declarou ter alergias ou algum problema de saúde. À polícia, a esposa de David disse que o homem teve reações ao medicamento ainda no estúdio, durante a tatuagem. "Na hora que tava limpando o excesso [do medicamento], meu marido perguntou o que ele tinha passado, e ele [tatuador] falou que era um anestésico. Depois, ele começou a passar mal. O tatuador falou: ‘Dá sal pra ele’. O outro rapaz que tava junto deu o sal, e coloquei debaixo da língua do meu esposo. Meu marido só fazia assim [balançava a cabeça] que não tava bem. Botei a mão no peito dele e falei pro tatuador que ele tava com o peito acelerado", disse a esposa. À polícia, no primeiro depoimento, o tatuador destacou que prestou auxílio desde o momento em que David começou a passar mal, orientando o homem, acionando o Samu e levando o cliente ao hospital. Na ocasião, o tatuador disse acreditar que o caso foi uma fatalidade e que, depois da morte, parou de usar lidocaína e qualquer tipo de anestésico em sessões de tatuagem. Relembre o caso: Polícia investiga caso de homem que morreu logo após fazer tatuagem Anestésico usado em homem que morreu após tatuagem tinha registro de veterinária O que diz a Anvisa e o CRM-PR Em nota, a Anvisa afirmou ser "vedada aos tatuadores a prescrição de quaisquer medicamentos como anestésicos aos seus clientes, uma vez que somente profissionais de saúde podem prescrevê-los". A Anvisa também destacou que, na bula da lidocaína, está descrito que a aplicação deve ser feita por profissionais da saúde e que a medicação deve ser utilizada em ambiente hospitalar. Segundo resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), a aplicação de anestesias pode ser feita apenas por algumas categorias de profissionais. No caso de anestésicos, o Conselho Regional de Medicina (CRM-PR) destacou que o uso dos medicamentos não pode invadir a competência médica, e que a aplicação de cremes anestésicos deve ser feita sob orientação. Um parecer técnico do CRM-PR também explica a prática de anestesia por leigos “não só é proibida, como também pode causar sequelas”. “Neste passo, tal procedimento caracteriza-se como exercício ilegal da medicina, devendo, os que assim procedem, ser denunciados à autoridade policial para que sejam tomadas as medidas cabíveis”, detalha o documento. Para a prática de médicos anestesistas, por exemplo, uma resolução do CFM determina que para qualquer anestesia, exceto em situações de urgência e emergência, deve-se saber com antecedência “as condições clínicas do paciente, cabendo ao médico anestesista decidir sobre a realização ou não do ato anestésico”. Responsável por farmácia de manipulação também foi ouvida Na investigação policial, a responsável pela farmácia de manipulação que aparece no rótulo do medicamento também foi ouvida antes do inquérito ser concluído. Ao delegado Wallace de Oliveira Brito, ela reforçou que o anestésico precisa de receita para ser vendido, mas que para a distribuição não é necessária retenção do documento por não ser um medicamento controlado, conforme portaria do Ministério da Saúde. Por isso, ela disse que a farmácia não tem arquivada a receita que José Manoel utilizou para adquirir o anestésico. Laudo contestou concentração do medicamento O laudo pericial do IML contestou a porcentagem de lidocaína presente no medicamento aplicado em David. O documento diz que “as medicações a base de lidocaína tópica são usualmente vendidas em creme a 4% e spray a 10%”, diferentemente da versão aplicada no cliente, de 20%. “O perito não encontrou na literatura a dose estabelecida para a solução que foi manipulada”, diz o laudo. De todas as substâncias procuradas no corpo de David, a lidocaína foi a única encontrada. À polícia, o tatuador afirmou que o medicamento foi manipulado e que apresentou receita para solicitá-lo em uma farmácia. Disse, também, que o produto estava dentro do prazo de validade. Profissão não regulamentada Atualmente a profissão de tatuadores não é regulamentada, por isso, não há regras claras sobre os direitos e deveres legais dos profissionais. Na Câmara dos Deputados, um Projeto de Lei de 2006 tentou regulamentar a profissão de tatuador, mas foi arquivado. Em 2007, outra proposta de criar regras para a prática de tatuagem e piercing também foi apresentada. A última movimentação foi em 2021. O projeto está pronto para avaliação da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Vídeos mais assistidos do g1 PR: Mais notícias do estado em g1 Paraná.