Bem público destinado à assistência vira ponto de torcida organizada
Criada em 2010 como projeto de solidariedade, a ARBEC se tornou utilidade pública e referência em Maringá e recebeu o direito de usar imóvel da prefeitura como sede

Bruna Bandeira da Luz
Cascavel
No dia 19 de outubro de 2010, Gilmar Ramos dos Santos e sua esposa, Paula Alana, abriram as portas de um projeto pessoal: a Associação de Assistência e Bem-Estar de Convalescentes de Maringá. A filha do casal, Brenda Vitória, havia nascido com paralisia cerebral, e as dificuldades enfrentadas pela família se transformaram em combustível para ajudar outras pessoas.
A ideia era simples e poderosa: emprestar equipamentos de locomoção e apoio médico-hospitalar a quem não podia pagar. Cadeiras de rodas, muletas, andadores, camas hospitalares circulavam de mão em mão. Ao longo de uma década, a ARBEC afirma ter atendido 12 mil pessoas, 70% delas em Maringá e o restante em cidades vizinhas e até no interior de São Paulo.
O reconhecimento veio em 2019, quando a Câmara Municipal aprovou projeto declarando a associação de utilidade pública. O prefeito Ulisses Maia sancionou a lei, e a ARBEC ganhou status oficial, espaço político e respaldo institucional.
Um bem público, uma contradição
Para consolidar a atuação, a Prefeitura cedeu um imóvel no Jardim São Silvestre, Rua Pioneiro Antônio Fritzen, nº 2290. A área, avaliada em mais de R$ 426 mil, foi repassada formalmente por meio de termos de permissão de uso assinados em 2018 e 2020. O objetivo era claro: armazenar os equipamentos da associação e mantê-los disponíveis à comunidade.
Mas desde o início, havia um problema: um parecer da Secretaria de Meio Ambiente de 2018 alertava que o terreno estava em área de preservação permanente (APP). Havia piscina, salão de festas, casa de caseiro, tudo irregular. A recomendação era a demolição das construções e a recuperação ambiental.
Apesar disso, a cessão foi mantida. O prazo final venceu em 11 de maio de 2022. A Prefeitura confirmou ao Ministério Público que não houve renovação. Na prática, a ARBEC já não tinha título jurídico para ocupar o imóvel.
Da ONG ao sobrenome político
Enquanto a associação perdia fôlego, seu fundador ganhava projeção. Nas redes sociais, a ARBEC sumiu: a última publicação oficial data de 2017. Quem passou a ocupar o espaço digital foi Gilmar da Arbec — a pessoa, não a instituição.
Em 2021, Gilmar abriu um CNPJ em seu nome para a Rádio Arbec FM, um MEI que também está hoje inapto na Receita Federal por omissão de declarações. No mesmo ano, denunciou ter sido chantageado por um servidor da Prefeitura, Hamilton Cardoso, para apoiar a reeleição do prefeito Ulisses Maia. Mensagens anexadas ao processo mostraram pressões explícitas: apoio político em troca da renovação do convênio da ARBEC. O caso virou ação de improbidade contra Cardoso e revelou como a entidade havia se tornado moeda de troca eleitoral.
Em 2022, Gilmar concorreu a deputado estadual pela Rede Sustentabilidade. Em 2024, anunciou pré-candidatura a vereador, mas desistiu meses depois. Em todas as campanhas, usou o nome de urna “Gilmar da Arbec”, consolidando a ONG como sobrenome político.
A denúncia que mudou o rumo
Em 31 de julho de 2025, o cidadão Anderson Cesar Coelho apresentou denúncia ao Ministério Público: o imóvel da Rua Antônio Fritzen estaria sendo usado como sub-sede da Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP) Sarandi. Segundo ele, a torcida pagava R$ 600 mensais de aluguel, valores retidos por Gilmar.
No dia 11 de agosto, promotores foram ao local. Encontraram o portão azul fechado, sem placas da ONG, com sinais de abandono. Um vizinho relatou que havia caseiros nos fundos. No entanto, recentemente, a torcida decidiu ficar placas de identificação em frente ao imóvel, as quais – inclusive – trazem de maneira clara o endereço que ocupam. Além da fachada, fotos nas redes sociais da torcida mostram que a “sub-sede” da TUP Sarandi tem: telão para jogos, mesa de pebolim, faixas e pintura verdes, convites públicos e muita festa.
O MP converteu a notícia em inquérito civil para apurar desvio de finalidade, ocupação irregular de bem público e possível improbidade administrativa. Oficiada pelo MP, a Prefeitura respondeu: a cessão venceu em 2022 e não foi renovada; houve tentativas de vistoria frustradas, com ocupantes impedindo a entrada de fiscais; a área é APP, sujeita à demolição; a responsabilidade pela guarda do imóvel após o vencimento do termo está indefinida.
A posição das partes
A Gazeta enviou perguntas à Prefeitura de Maringá, a Gilmar Ramos dos Santos e à TUP Sarandi. Nenhum dos três respondeu até o fechamento desta edição. A TUP Sarandi chegou a responder mensagens, mas deixou de retornar quando a reportagem se identificou como veículo de comunicação. A prefeitura pediu mais tempo para responder, o qual foi concedido. No entanto, passado o prazo (dia 30/09), não obtivemos retorno.
Além dos e-mails, foram feitas tentativas de contato com Gilmar pelos telefones informados à Receita Federal, pelo telefone geral da Prefeitura e diretamente na Secretaria da Pessoa com Deficiência, onde ele ocupa hoje a função de gerente de Políticas Públicas. Antes disso, esteve cedido ao gabinete do vereador Jeremias, entre janeiro e julho deste ano. Também tentamos falar com Gilmar via gabinete do vereador. Nenhum dos contatos foi bem-sucedido.
