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'Ainda estou recuperando a minha dignidade', relata vítima resgatada de trabalho análogo à escravidão no PR

Por Giuliano Saito


Entre 1995 e 2022, Paraná resgatou, em média, 43 vítimas do crime por ano, segundo Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas. Veja como evitar cair em propostas enganosas. 14 trabalhadores são resgatados em condições análogas à escravidão em pedreira do Paraná O cargo de gerente de uma indústria de roupas no interior do Paraná pareceu vantajoso quando Joana recebeu a oferta de uma amiga de infância. Mas o que parecia ser uma chance de mudar de vida, se transformou em anos de violações de direitos. Joana é o nome fictício usado nesta reportagem para contar a história de uma mulher de 42 anos, vítima de trabalho análogo à escravidão. Ela preferiu não ser identificada. A vítima foi resgatada há cerca de quatro anos, mas as marcas do que viveu permanecem. Apesar da indenização, houve perdas irreparáveis. Nos cinco anos em que viveu em condições análogas à escravidão, Joana ficou longe do filho, na época com apenas três anos. "Quando saí, meu filho já estava com oito anos e não me reconhecia como mãe. Foi muito sofrido para mim. Faço atendimento psicológico e tive medo de voltar a trabalhar. Ainda estou recuperando a minha dignidade. Quatro anos que retornei para a minha vida, mas não consigo esquecer", afirmou a vítima. Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Telegram Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escarvo e Tráfico de Pessoas mostram que, entre 1995 e 2022, o Paraná resgatou, em média, 43 pessoas vítimas do crime por ano. Ao todo, foram 1.223 pessoas resgatadas no período. As cidades do estado com mais vítimas retiradas de condições análogas à escravidão nos anos analisado são: Perobal: 125 pessoas Cerro Azul: 110 pessoas Tunas do Paraná: 97 pessoas Palmas: 95 pessoas Engenheiro Beltrão: 92 pessoas Campina do Simão: 81 pessoas General Carneiro: 78 pessoas Irati: 58 pessoas No caso de Joana, ela relata que, antes de aceitar a proposta, a amiga a garantiu que o trabalho era decente e que os direitos seriam preservados. Nada disso se concretizou. "Chegando lá, tive que aprender a fazer tudo: limpar o chão, as máquinas, costurar, arrematar, cortar, abrir a fábrica e fechar. Meus documentos ficaram com a encarregada, que não me devolveu mais", conta Joana. Hoje, ela conta com apoio psicológico, mas diz ter medo de trabalhar novamente e de voltar a ser submetida a uma situação tão traumática. Trabalhadores são resgatados em condições análogas à escravidão no Paraná Divulgação/MPT Histórico escravagista e precarização do trabalho no Brasil A procuradora do Ministério Público do Trabalho no Paraná (MPT-PR), Cristiane Sbalqueiro Lopes, destaca que o Brasil, último país a abolir a escravidão, mantém características de dividir a população em "castas". Ela também é coordenadora regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT (Conaete) e explica que as grandes desigualdades - de raça e classe, por exemplo - mascaram o que considera ser a "continuidade da escravidão no Brasil". "Nós tratamos desigualmente pessoas em função da sua classe social e da cor da sua pele, continuamos fazendo isso. [...] De uma forma geral, o Brasil está tendo aumento nos índices de trabalho escravo." 12 paraguaios foram resgatados em condição análoga à escravidão em uma plantação de mandioca no PR BPFRON/ Divulgação Para a procuradora, a diminuição de direitos trabalhistas e a terceirização e até quarteirização dos serviços são fatores que contribuem para a manutenção e até aumento dos casos de trabalho análogo à escravidão. O cenário se agrava, segundo a procuradora, em meio a uma visão desumanizada, que apenas foca na realização dos serviços ou da produtividade, sem se importar com as condições dos trabalhadores. “Os empregadores relativizaram as condições de trabalho que eles oferecem, acham que estão fazendo favor e não querem saber que condições estão oferecendo aos trabalhadores. [...] Com isso a gente vai descendo cada vez mais os limiares daquilo que é aceitável", avalia. 'Você não é um ser humano' A história de violações de direitos humanos e trabalhistas vividos por Joana reforça a tese da procuradora. A vítima relata que se sentia apenas um "número a ser contabilizado". "Me sentia usada, humilhada, maltratada, hostilizada o tempo todo, uma verdadeira escrava. Imaginei que não tinha saída para a minha vida. As pessoas são muito egoístas, não desejam saber o que você sente. Você significa produção, você não é um ser humano, você é mais um número a ser contabilizado no fim do mês", destacou a vítima. A procuradora do trabalho afirma que, muitas vezes, a terceirização no Brasil ignora quem ou em quais condições fará o serviço, desejando apenas que ele seja feito. "Com o pensamento de: 'Eu não quero saber quem está limpando a minha casa, quero ela limpa' ou 'não quero saber se quem está limpando a minha casa tem banheiro para fazer as próprias necessidades", elabora a procuradora. Violação dos Direitos Humanos Trabalhadores são resgatados em condições análogas à escravidão Divulgação/MPT A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, é o principal código de universalização da proteção do ser humano. Ao menos três artigos reforçam o direito à liberdade, a não aceitação de escravização de pessoas e a livre escolha de trabalho e remuneração pelo mesmo: Artigo 3: 'Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal'; Artigo 4: 'Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas'; Artigo 23: 'Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual'. Outros documentos, adotados pelo Brasil, como a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura (1926) e a Convenção Suplementar sobra a Abolição da Escravatura (1956) também tratam de direitos e condições trabalhistas. Entre as legislações brasileiras, o artigo 149 do Código Penal fixa os elementos que caracterizam a condição análoga à escravidão. A submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, seja sujeitando o trabalhador a condições degradantes de trabalho ou restrição de locomoção do trabalhador por dívidas com o empregador, são enquadrados no item. A pena para quem comete o crime prevê reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência, podendo ser aumentado o período de prisão se o crime for cometido contra menores de idade e por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 21 paraguaios são resgatados em condição análoga à escravidão em uma plantação de mandioca no PR, diz MPT Apesar dos diversos recursos previstos em lei, a coordenadora de Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania e chefe do Núcleo de Combate ao Tráfico de Pessoas e Trabalho Análogo à Escravidão, Sílvia Xavier, afirma que ainda faltam ações mais efetivas de enfrentamento. Para a erradicação de trabalho análogo à escravidão e reconhecimento dos direitos humanos, ela acredita ser necessário, por exemplo, debater ainda nas escolas o combate ao crime e o respeito ao outro. "Temos cultura de enfrentamento ao tráfico de drogas, mas não temos nas escolas, por exemplo, de prevenção ao trabalho escravo. Isso precisa ser inserido na educação, as crianças precisam entender, aprender que o outro não é seu serviçal", diz. 12 paraguaios foram resgatados em condição análoga à escravidão em uma plantação de mandioca no PR, diz MPT BPFRON/ divulgação Xavier destaca ainda as questões ligadas à imigração. Ela afirma que um estado que se destaca especialmente pela grande presença de descendentes europeus, mas que trata e submete imigrantes a trabalhos sem a remuneração devida e condições básicas, é, no mínimo, contraditório. "Essas pessoas chegam no nosso estado, são discriminadas, infelizmente sofrem xenofobia em razão de raça, cor, etnia. Eu acho que está faltando realmente a unidade, um pouquinho mais de calor, pouquinho mais de amor", afirmou Xavier. Fiscalização e serviços de combate ao crime no PR Denúncias do crime de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas via aplicativo, também pelo site do MPT, pelo disque 100, assim como diretamente nas unidades de Ministério Público do Trabalho. Cristiane Sbalqueiro Lopes, procuradora do trabalho no Paraná, afirma haver ações de combate e erradicação do crime, mas que faltam auditores para realizar as fiscalizações. Para driblar os números e trazer conhecimento ao público, ações de conscientização são realizadas em pontos estratégicos, como rodoviárias, aeroportos e outros locais de maior circulação. Entre elas estão as apresentações mensais do programa "Liberdade no Ar". Os materiais falam sobre as diversas formas de enquadramento do crime de trabalho análogo à escravidão, como os casos de exploração sexual, serviço doméstico forçado, propostas enganosas para adolescentes jogarem futebol, trabalho forçado no campo, entre outros. "Temos também os cursos de capacitação da rede de atendimento do MPT onde buscamos sensibilizar setores como a assistência social, conselhos tutelares, empresas, pessoas, lideranças nos municípios para que haja uma consciência sobre esse tema e maior divulgação de ações preventivas", explica. Serviços semelhantes também são oferecidos pela Secretaria de Justiça, segundo Sílvia Xavier. Há ainda parcerias com universidades, igrejas e comunidades pela prevenção e erradicação do crime. Formas de prevenir A página no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) traz alguns pontos que podem observados pelos trabalhadores antes de aceitar propostas de emprego, especialmente as que oferecem condições muito vantajosas, mas têm procedência duvidosa: questionar propostas de emprego fácil e muito lucrativas; ler atentamente o contrato de trabalho; buscar informações sobre a empresa contratante; se atentar aos contratos que incluem deslocamentos, viagens nacionais e internacionais; não deixar cópias de documentos pessoais e deixá-las em mãos de parentes ou amigos; deixar sempre endereço, telefone e/ou localização da cidade para onde está viajando a trabalho; ter em mãos endereços e contatos de consulados, ONGs e autoridades da região para onde está viajando; ao viajar, não deixar de se comunicar com familiares e amigos. VÍDEOS: Mais assistidos g1 PR Veja mais notícias da região em g1 Oeste e Sudoeste.