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A 'nova' jurisprudência punitiva e a defesa silenciada

A questão é. A crueza deste diagnóstico pode fomentar políticas judiciárias?

Por Gazeta do Paraná

A 'nova' jurisprudência punitiva e a defesa silenciada

Por Eugênio Pacelli de Oliveira*

Há verdades incontestes, apesar de toda vã filosofia. Crimes há de toda sorte e natureza; crimes tingidos do vermelho de vítimas nominadas, crimes vestidos de branco, com ou sem colarinho, a produzir prejuízos difusos. Tudo isso é certo, como dois e dois são quatro, mas chegará a hora de Roberto Carlos e Caetano Veloso, quando dois e dois serão cinco.

A questão é. A crueza deste diagnóstico pode fomentar políticas judiciárias? Essa política seria uma espécie de combate legítimo à impunidade que campeia, sobretudo no andar de cima?

Não, não é. Não é legítima, tampouco pode ser política e por várias razões, a serem objetivamente postas.

Começo com exemplo concreto: o banimento das sustentações orais nos tribunais superiores. Tão certo quanto a profusão delituosa antes mencionada, as sustentações orais cansam e cansam muito. Se elas cansam os advogados que as ouvem, o que dirá dos Ministros, cujos ouvidos se dobram ao dever de ofício.

A primeira saída encontrada pelas cortes foi o fim da colegialidade qualificada, para o nascimento de outra, menos qualificada, a colegialidade ratificadora. Simples: quando se tem o julgamento colegiado, com sustentação oral, as teses são debatidas em maior extensão e profundidade, podendo atingir, na mesma medida, aqueles que não são os relatores do processo.

Na nova jurisprudência quase tudo é decidido monocraticamente, com foros, por inconsciência coletiva, de definitividade, presente também o princípio da confiança, que reforça outro, o da desconfiança, reservado às defesas criminais. Nesse campo, os agravos internos ou regimentais dependem exclusivamente dos esforços dos demais membros da corte, livres, porém, das sustentações de maior envergadura. Que, aliás, se esforçam mesmo, mas na medida do possível.

A César o que é de César: no mesmo Tribunal, a pronta e perfeita intervenção de um dos membros da Turma pôs em liberdade quem se encontrava preso há quase um ano, sem que houvesse, sequer, a resposta escrita dos réus. Mas, houve sustentação oral. Curta, mas sincera.

Fosse pouco, entram em cena os julgamentos virtuais, que, nos Tribunais Superiores, não dependem das defesas. Eles vão para a pauta e pronto! Aquelas, as defesas, se quiserem, que enviem vídeos com sustentações orais. Sugiro mais: que orem também para que sejam vistas e ouvidas!

Nesse passo, o descompasso subiu de tom

Temos visto, repetidas vezes, o acolhimento de recursos especiais e extraordinários do Ministério Público, com desatenção aos requisitos tão criteriosamente exigidos às defesas. E monocraticamente, por certo. E sem qualquer respaldo nos critérios do próprio regimento interno.

Dois exemplos de conhecimento pessoal, para profunda frustração profissional, e, em nível muitíssimo mais elevado, de quem se dedica à ciência jurídico penal (processual penal) há quase trinta anos. Ambos do STJ.

REsp do MP sobre decisão de TJ no qual se revogou a permanência de cautelares patrimoniais, em processo cuja duração (das cautelares) superava sete anos! Sem sentença de primeiro grau! Mais ainda: o próprio MP, em primeiro grau — desrespeitado pela PGJ, pelo visto, por falta de comunicação entre eles — se pronunciou, em alegações finais, pela absolvição de todos!! De todos, por ausência de prova! Prova essa, que deveria ser a justificação das cautelares, mas que nunca foram, na verdade.

 

Em uma única assentada, veio decisão monocrática dando provimento a recurso não admitido, sem tangenciar essas duas fundamentais circunstâncias: o excesso de prazo (fato praticado em 2012 — cautelares de 2018) e o pronunciamento do MP originário, pela absolvição.

 

Outro

REsp do MP acolhido monocraticamente para restabelecer prisão e renascer a validade de provas anuladas (e anuladas segundo a jurisprudência do STF). Aos detalhes não detalhados: a prisão havia sido decretada em 2017, anulada em 2018. Restabelecer cautelar pessoal com atraso de oito anos, em processo arquivado em primeira instância, somente pode ocorrer na ausência de ampla defesa naquela Corte. Ou ausência de defesa simples, para se opor à voz de quem tem assento no Tribunal (o MP).

Bem, mas quem aguenta tanto HC, tantos Agravos e Embargos Declaratórios? Ora, assim não dá, não é mesmo?

 

 

Não é não!

Ou bem se admite que todos os condenados que chegam às Cortes Superiores são mesmo presumidamente culpados, e que inexistem irregularidades processuais absolutas, ou se cumpre o dever com a verdade da Justiça, com respeito à ampla defesa. Erros desta natureza — e tem outras tantas — poderiam ser evitados em um único despacho com o advogado ou com a sustentação oral no julgamento. A primazia da voz ministerial não se justifica.

 Se a primeira leitura é de provimento do recurso da acusação, que se designe audiência com a defesa ou que se lhe permita sustentar suas razões, com a atualização do estado da arte do processo. As decisões aqui referidas reproduzem um estado de coisa indigesto às pretensões de Justiça, que vem mantendo condenações sem saber as circunstâncias atualizadas da causa. Mandar prender oito anos depois da decisão que anulou processo, sem nem saber que este foi arquivado em primeiro grau explicita sinal de alerta vermelho.

E a defesa havia alertado que o juiz de primeiro grau — autor da prisão anulada no TJ — havia declinado de sua competência. Há tempos, antes do julgamento do REsp. Ponto.

Por fim, se a nova jurisprudência busca se legitimar no combate à impunidade, esse em tudo legítimo, que se renuncie de vez ao devido processo legal.

 

Eugênio Pacelli de Oliveira é mestre e doutor em Direito. Advogado, ex-procurador regional da República no Distrito Federal. Relator-Geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal, instituída pelo Senado da República. Texto publicado originalmente no site Conjur

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