Uma praça a cada 17 km: Rio Grande do Sul discute modelo perverso de pedágio
Audiência Pública realizada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul discutiu modelagem que pode trazer grandes danos a população gaúcha
Por Da Redação

A proposta do governo do Rio Grande do Sul para conceder à iniciativa privada a administração de mais de 400 quilômetros de rodovias estaduais foi duramente questionada por deputados, prefeitos e entidades regionais durante audiência pública realizada nesta quinta-feira (10), na Comissão de Segurança, Serviços Públicos e Modernização do Estado da Assembleia Legislativa. O encontro, proposto pelo deputado Miguel Rossetto (PT), teve como foco principal o chamado Bloco 2 de concessões, um pacote que abrange 414,9 km de estradas em 32 municípios das regiões Norte e Vale do Taquari. O Bloco 2 prevê a implementação de um sistema de pedágios tipo Free Flow, com 24 pórticos de pedágio ao longo do trecho, o que representará, em média, um pedágio a cada 17 km, e um pórtico na área de cada município.
O evento marcou a sequência de uma série de discussões sobre os impactos da nova etapa de privatizações, e deixou evidente o amplo descontentamento com o modelo apresentado pelo governo Eduardo Leite (PSDB). Embora o Executivo tente defender a proposta com promessas de obras e melhorias, as críticas vieram de todos os lados do espectro político, incluindo parlamentares da base aliada. O discurso técnico do secretário da Reconstrução Gaúcha, Pedro Capeluppi, não foi suficiente para conter a pressão exercida pelos deputados contrários a medida.
A principal crítica ao projeto se concentra na desproporção entre os investimentos públicos e privados, frente ao valor da tarifa que será cobrada da população. Segundo a nova proposta, o Estado ampliará sua participação por meio do Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), com aporte de R$ 1,5 bilhão. Já o investimento privado, que inicialmente era de R$ 5,5 bilhões, foi reduzido para R$ 2,8 bilhões, uma queda de 48,14%. Ainda assim, a redução na tarifa por quilômetro foi de apenas 17%, passando para R$ 0,18 (ou R$ 0,19, caso os municípios não abram mão do ISS).
Para a deputada Sofia Cavedon (PT), o modelo “favorece a concessionária, não a população nem as estradas”. Ela ainda destacou que o lucro previsto para a empresa que vencer o leilão é de 18,26%, valor superior à taxa de retorno do Bloco 3 (14,6%), e que “não há a mesma proporção na redução dos investimentos e das tarifas”.
Outro ponto levantado por Sofia foi o impacto sobre agricultores familiares, impedidos de vender seus produtos nas margens das estradas desde que suas bancas foram removidas há quase dois anos. “O governo não propõe solução para essas famílias que dependem disso para sobreviver. Isso é criminoso”, acusou.
O sistema de cobrança proposto também foi alvo de duras críticas. O Bloco 2 prevê 24 pórticos de cobrança automática (free flow) ao longo de pouco mais de 415 km, uma média de um pedágio a cada 17 km. O deputado Guilherme Pasin (PP) foi enfático: “Estamos falando da região mais atingida pelo desastre climático do Rio Grande do Sul, mais empobrecida nesses últimos 400 dias. Estamos falando de uma região que precisa de investimento ao invés de custo agregado no seu bolso.”
Para ele, o modelo atual pode causar isolamento e estrangulamento comercial de diversos municípios. “Quem modelou esse projeto desconhece a realidade cultural do Vale do Taquari, da Serra, do Norte. Com R$ 1,5 bilhão em caixa, o Estado poderia executar diretamente essas obras, sem entregar de bandeja à iniciativa privada.”
Na mesma linha, o deputado Cláudio Branchieri (Pode) resumiu: “As contrapartidas são insuficientes, as obras vão demorar e a tarifa vai pesar desde o primeiro dia.”
A insatisfação também é evidente entre os prefeitos dos municípios afetados. O prefeito de Casca, que lidera o grupo de prefeitos contrários ao modelo, revelou em entrevista à Gazeta do Paraná, que 32 gestores municipais assinaram uma carta de repúdio, acompanhados por 26 deputados estaduais, 17 federais e dois senadores. Segundo ele, mais de 50 Câmaras de Vereadores também formalizaram oposição à proposta.
O prefeito explica que os recursos do Funrigs, voltados à reconstrução do estado após as enchentes históricas, estão sendo desviados para subsidiar uma concessão que, segundo ele, beneficia majoritariamente o setor privado.
“Por que somos contrários? Primeiro porque esse dinheiro é um dinheiro para a reconstrução do Rio Grande do Sul, da infraestrutura nas áreas que foram totalmente afetadas pelas cheias e pelas enchentes. E também porque as obras desse Bloco 2, elas não condizem com toda a realidade que nós precisamos”, explicou Jurandi Perin.
Ele também criticou o pedido do governo para que os municípios renunciem à arrecadação do ISS, a fim de reduzir a tarifa em apenas um centavo por quilômetro.
“Não basta mais os municípios que hoje estão suportando a saúde em média e alta complexidade, o transporte escolar, a educação, e a segurança pública, ou seja, vários serviços que seriam de obrigação do governo estadual e federal e que já estão sobre os municípios. Agora nós temos que retirar o ISS para baixar apenas 1 centavo no valor por quilômetro.”
Outro ponto levantado por ele foi o impacto direto sobre as comunidades agrícolas. Em regiões como o trecho entre Casca e Passo Fundo, a duplicação da rodovia atravessa propriedades de pequenos produtores, sem prever passagens para máquinas agrícolas. “A nossa região tem o turismo e tem as propriedades rurais. Somos grandes produtores de frango, de suinocultura, do leite, e existe uma movimentação muito grande nessas pequenas propriedades. Como é que nós iremos concorrer com outros estados? Não temos mais condições. Há hoje empresas que tinham investimentos gigantescos que estão parando porque querem ver como é que vai ficar o pedágio”, disse Jurandi.
Além disso, ele alertou que o valor da tarifa, hoje apresentado como R$ 0,19 por km, pode chegar a R$ 0,25 assim que as pistas duplas forem concluídas, devido ao reajuste automático previsto em contrato.
“Toda população ficou contra”
Representando o movimento popular RS Pedágios Não, Fernando da Silva Santos, conhecido como Fernando da Kombi fez uma fala contundente em entrevista à Gazeta. Ele pontuou a sucessão de tragédias enfrentadas pela população gaúcha nos últimos anos, cobrando sensibilidade e responsabilidade do governo:
“O Rio Grande do Sul passou por três ou quatro grandes estiagens, depois veio a pandemia, e logo depois enfrentamos grandes enchentes em setembro e novembro de 2023. Em maio e junho de 2024, tivemos a maior enchente da história, e agora há pouco mais de 20 dias outra inundação, seguida por mais uma, na semana seguinte. O povo está empobrecido, sem condições de pagar um pedágio a cada 17 quilômetros”, criticou.
Fernando lembrou que o governador Eduardo Leite está se amparando em uma lei aprovada em 2016 para avançar com os blocos de concessões, sem a necessidade de aprovação da Assembleia Legislativa:
“Venderam a Sulgás, a Corsan, e agora querem conceder as rodovias por 30 anos, podendo chegar a 35. O Bloco 3 já está instalado, cheio de problemas e obras atrasadas. O Bloco 2 é a nossa grande luta: são 32 municípios, 419 km com pedágio a cada 17 km. O governo quer dar R$ 1,5 bilhão de graça para a empresa vencedora, só para baixar o valor do quilômetro rodado de R$ 0,32 para R$ 0,19. E mesmo com oposição de Câmaras de Vereadores, prefeitos, deputados estaduais, federais e senadores, o governo ainda quer abrir a licitação esse mês.”
O Bloco 3, citado por Fernando que está com obras atrasadas, foi arrematado pela Concessionária Caminhos da Serra Gaúcha, que é formado por duas empresas paranaenses, sendo a concessionária concorrente única no leilão.
Fernando também denunciou o caráter restrito das audiências públicas realizadas:
“As duas primeiras foram nos dias 23 e 24 de janeiro, quando todo mundo estava de férias: deputados, prefeitos, vereadores. Só agora, nesta audiência, tivemos um representante do governo para ouvir as críticas. E mesmo assim, o que sustenta esse projeto são seis dúzias de prefeitos ligados ao MDB, partido do vice-governador Gabriel Souza, que já quer ser candidato a governador.”
Falta de diálogo
A condução do processo de concessão também foi criticada por sua falta de transparência e diálogo. Apesar de o Executivo alegar que mais de 390 sugestões foram recebidas na consulta pública, lideranças regionais reclamam que as mudanças efetivas foram limitadas.
Miguel Rossetto afirmou que o projeto ainda está sob análise do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e que o debate na Assembleia continuará. “Temos R$ 1,5 bilhão em recursos públicos disponíveis. Precisamos avaliar o papel da EGR e considerar alternativas públicas. Queremos construir uma alternativa justa do ponto de vista social e do ponto de vista econômico”, destacou.
A Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR), hoje responsável por mais de 260 km das estradas incluídas no Bloco 2, foi citada por vários deputados como uma opção viável para a realização das obras, com tarifas mais baixas e maior controle público.
O único representante do governo presente na audiência foi o secretário Pedro Capeluppi. Em sua fala, ele alegou que “nenhum deputado me procurou para discutir a planilha econômica” e desafiou os críticos a apontarem erros nos números. Em tom categórico, afirmou: “O governador Eduardo Leite já disse que o Bloco 2 vai sair. Não há volta.” Ainda assim, admitiu que “mudanças pontuais” podem ser incorporadas à proposta.
Do lado governista, o deputado Airton Artus (PDT) reconheceu que “é preciso reduzir as tarifas” e que “a população pede obras, mas também quer justiça no valor pago”. Já o deputado Dimas Costa (PSD) defendeu genericamente a política de concessões, citando que “a redução dos acidentes nas estradas pedagiadas é superior a 50%”.
