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“Minicassinos” no Paraná operam na fronteira da legalidade e movimentam milhões

s Com milhares de máquinas e milhões em outorgas, as videoloterias da Apostou no Paraná avançam sob lacunas legais, questionamentos sobre governança, riscos financeiros e impactos sociais 

“Minicassinos” no Paraná operam na fronteira da legalidade e movimentam milhões Créditos: Reprodução

Quando se entra em uma das dezenas de pontos da Apostou espalhados pelo Paraná, a experiência pode lembrar um pequeno cassino: fileiras de telas coloridas, sons repetitivos, apostadores concentrados em apostas rápidas e a promessa de ganhos imediatos. À primeira vista, os terminais de videoloteria - dispositivos eletrônicos que exibem jogos instantâneos - parecem apenas uma evolução digital das raspadinhas tradicionais. Mas por trás dessa aparência está um modelo de negócio que movimenta recursos consideráveis, suscita interpretações jurídicas em aberto e atrai questionamentos internos sobre transparência, governança e possíveis irregularidades.

A Apostou é uma das concessionárias autorizadas pelo Estado a instalar e operar videoloterias no território paranaense, com autorização da Lottopar - a autarquia estadual responsável por regular e fiscalizar as loterias no Paraná. Segundo os registros públicos da própria empresa, dezenas de pontos físicos dispõem desses terminais, onde os apostadores podem fazer suas apostas diretamente nos equipamentos, sob a justificativa de participação em loterias instantâneas digitalizadas.

Mas a narrativa do “negócio legalizado” encontra resistência quando se examina mais a fundo o arcabouço normativo e os indícios que emergiram nas investigações e apurações sobre a Lottopar e o modelo adotado no Paraná.

O peso do negócio no orçamento estadual chama atenção: mais de 2.500 máquinas eletrônicas licenciadas no estado, gerando um faturamento de cerca de R$ 60 milhões só em taxas de outorga pagas pelos operadores. Antes mesmo de os terminais começarem a operar comercialmente, o Estado arrecadou valores significativos com a simples emissão de autorizações para a exploração desses equipamentos. Esse volume de recursos transforma as videoloterias em uma operação de grande escala e relevância fiscal.

No entanto, a legislação brasileira - em especial a combinação entre normas federais e estaduais - não oferece uma clareza absoluta sobre a legalidade desse tipo de instalação física aberta ao público.

A legislação federal que trata de loterias e apostas de quota fixa estabelece um marco para exploração de apostas no país, mas não descreve explicitamente a legalidade de máquinas de aposta física acessíveis ao público como os terminais de videoloteria introduzidos no Paraná. Ao mesmo tempo, a antiga Lei de Contravenções Penais brasileira ainda proíbe a exploração de jogos de azar em lugares públicos, o que cria uma tensão interpretativa entre a regulação estadual e a legislação federal penal.

Estados como o Paraná interpretaram que, com base em dispositivos constitucionais que reconhecem competência dos entes federativos em matéria de loterias, podem criar e operacionalizar esse tipo de modelo por meio de suas loterias estaduais. A tese é que, sob a rubrica de loterias instantâneas digitalizadas, a exploração de videoloterias seria compatível com o arcabouço legal vigente. Essa argumentação é reforçada por decisões do Supremo Tribunal Federal que afirmaram que Estados e o Distrito Federal têm competência para explorar loterias, afastando o monopólio absoluto da União sobre essas atividades.

Apesar disso, críticos jurídicos e especialistas continuam a apontar que a ausência de uma lei federal clara sobre terminais físicos de apostas cria um vácuo normativo que torna o modelo suscetível a questionamentos legais, especialmente quando a experiência de jogo se aproxima perigosamente daquelas vividas em cassinos.

 

Governança e riscos 

As questões jurídicas não se limitam às lacunas de normatização: há fortes sinais de que a estrutura de governança da própria Lottopar - o órgão regulador responsável por conceder autorizações e supervisionar as videoloterias - pode ter sido moldada por relações políticas e interesses que levantam dúvidas sobre imparcialidade.

Em momentos recentes, foram reveladas nomeações para o comando e cargos estratégicos da Lottopar de pessoas com vínculos pessoais e políticos diretos com o núcleo do poder estadual, incluindo parentes por afinidade e doadores de campanha do então governo do Paraná. Essas nomeações ocorreram sem processos transparentes de seleção e suscitaram críticas quanto à possibilidade de captura regulatória - ou seja, a influência de interesses políticos e privados sobre um órgão que deveria ter forte independência técnica para definir, fiscalizar e aperfeiçoar as regras do setor.

A importância dessa crítica é proporcional ao tamanho do negócio de videoloterias: quando quem regula está ligado política e pessoalmente a quem concede as autorizações, o risco de decisões capturadas por interesses específicos aumenta, especialmente em um modelo que já apresenta fragilidades interpretativas na legislação.

 

Indícios de irregularidades

A expansão das videoloterias no Paraná se deu em paralelo a movimentos de fiscalização e apuração por parte de órgãos de controle e do Ministério Público estadual, que requisitaram informações detalhadas à Lottopar e às concessionárias sobre movimentações financeiras atípicas e relações contratuais com casas de apostas esportivas. Esses pedidos de informação surgiram a partir de sinais de fluxos que não estavam claramente justificados em termos de receita de loteria ou contrato de serviços, alimentando questionamentos sobre a transparência, conformidade e mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro no modelo de operação adotado.

Ainda que não haja, até o momento, condenações ou decisões judiciais transitadas em julgado, o fato de promotores e auditores requisitarem esclarecimentos públicos reforça a necessidade de mecanismos de governança e fiscalização mais robustos no setor.

A ausência de regras fiscais integradas que permitam rastreamento detalhado de fluxos, bem como sistemas de compliance eficientes para blindar o modelo contra uso indevido de recursos, abre espaço para que fluxos financeiros fiquem sem explicação clara ou controle efetivo, algo que especialistas em direito econômico e prevenção à lavagem de dinheiro consideram particularmente problemático em um setor que movimenta grandes somas.

 

Disputa de competências

Os debates em torno das videoloterias no Paraná não estão isolados. Em outras unidades da federação, como no Rio de Janeiro, a tensão entre normas estaduais e municipais revelou que prefeituras podem negar ou cancelar alvarás de funcionamento para máquinas de apostas físicas, baseando-se em normas locais de postura, saúde pública e ordem urbana, mesmo diante de regulamentações estaduais permissivas.

Esse tipo de conflito evidencia que a autorização de um Estado não garante automaticamente o funcionamento irrestrito dos terminais no nível local, reforçando que a matéria ainda carece de uma definição mais clara no plano jurídico nacional - seja por meio de legislação federal específica, seja por decisões definitivas do judiciário superior.

 

Dilema social

O modelo de videoloterias não é apenas um tema jurídico ou econômico. Nos pontos físicos, a analogia com ambientes de jogo - reforçada pelo design, estímulos audiovisuais, facilidade de uso e acessibilidade - suscita preocupações de ordem social. Pesquisadores em saúde pública destacam que experiências de jogo repetitivas e de acesso fácil podem estimular comportamentos compulsivos e endividamento, especialmente entre populações vulneráveis.

Em muitos desses pontos, apostadores podem permanecer horas diante das máquinas, repetindo apostas rápidas, com pouca ou nenhuma orientação sobre limites, riscos ou mecanismos de proteção ao jogador. A crítica vai além do jurídico: trata-se de uma questão de política pública e proteção social, que demanda atenção de órgãos reguladores, gestores públicos e da sociedade em geral.

 



 

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