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Denúncia detalha riscos do contrato da Celepar com a Google

Cláusulas do contrato entre a Celepar e a Google revelam riscos bilaterais frágeis, juros altos e poder unilateral da multinacional sobre dados estratégicos do Paraná

Por Gazeta do Paraná

Denúncia detalha riscos do contrato da Celepar com a Google Créditos: Roberto Dziura/AEN

Bruna Bandeira da Luz

Cascavel

 

Na manhã de 6 de junho de 2025, a sede da Celepar parecia uma daquelas construções onde o tempo se arrasta devagar. O concreto frio, os corredores longos, a luz branca refletindo em mesas com pilhas de papéis e monitores piscando relatórios. Nada denunciava que, atrás de portas fechadas, a estatal estava assinando o contrato mais vultoso de sua história recente. Um documento com potencial de R$ 670 milhões, selado com a multinacional Google Cloud.

A notícia foi apresentada em tom solene: modernização, inovação, futuro. Mas nem tudo o que brilha em discursos resiste à leitura atenta das páginas. Dia seguinte à publicação de duas reportagens por esta Gazeta, um e-mail anônimo chegou à redação. Não era panfletário nem explosivo. Pelo contrário, vinha com a frieza de um relatório médico: cláusulas numeradas, percentuais anotados, riscos apontados como quem abre um prontuário para revelar a doença escondida.

E ali estavam elas, as linhas miúdas do contrato, tão reveladoras quanto o silêncio de um corredor à noite. A Cláusula 8.1 impunha que as taxas pagas à Google fossem “não reembolsáveis”. A Celepar deveria pagar, independentemente de conseguir repassar os custos a seus clientes — secretarias, órgãos públicos, prefeituras. Era como se alguém comprasse um ingresso para um espetáculo e, mesmo que o show nunca acontecesse, o dinheiro não pudesse voltar.

Na sequência, a Cláusula 8.4 cravava juros de 1,5% ao mês — quase 20% ao ano — em caso de atraso. Para uma estatal acostumada a trabalhar com limites muito mais brandos, a diferença parecia a de um rio manso que, de repente, desemboca em uma corredeira.

A Cláusula 8.5, então, soava como a mais inquietante: a Google poderia suspender serviços ou rescindir o contrato se julgasse, de forma unilateral, que a “idoneidade creditícia” da Celepar estivesse em risco. A palavra “idoneidade”, solta no papel, parecia conter dentro de si um abismo. Afinal, quem definiria o que é ou não “idôneo”? Bastaria uma avaliação interna da multinacional.

Os riscos não paravam por aí. O contrato previa vigência de 12 meses com renovação automática. Na administração pública, esse tipo de cláusula é proibido: contratos devem ter prazos claros, avaliações de conveniência, justificativas formais. Mas ali estava, rodando sozinho, como um relógio que nunca desliga.

E, no caso de conflito, o caminho não seria a Justiça comum. Pela Cláusula 17.11, as disputas seriam levadas à Câmara de Comércio Brasil-Canadá, em São Paulo, em arbitragem privada. À primeira vista, parecia apenas um detalhe jurídico. Mas, na prática, significava retirar o contrato da esfera de transparência dos tribunais públicos e colocá-lo em uma sala reservada, onde decisões são tomadas longe dos olhos da sociedade.

Outro ponto grave estava na Cláusula 16, que limitava a responsabilidade da Google a valores equivalentes ao que foi pago nos últimos doze meses. Em caso de falha catastrófica — imagine-se, por exemplo, um apagão digital que deixasse hospitais sem acesso a históricos médicos, escolas sem sistemas, a Receita Estadual sem dados — a indenização seria ínfima diante do tamanho do prejuízo.

E havia ainda a Cláusula 1.2(b), permitindo que a Google alterasse unilateralmente o “Guia do Programa”, parte integrante do contrato. Bastava uma notificação com trinta dias de antecedência. Para a Celepar, a única saída seria aceitar ou romper. Era como morar em uma casa alugada e, de um dia para o outro, descobrir que o dono mudou todas as regras: agora não se pode mais usar a cozinha após as oito, nem pendurar quadros na parede. Se não gostar, arrume as malas.

Esses pontos não estavam apenas na denúncia: estavam confirmados nos documentos. Em preto no branco, em páginas que, à primeira leitura, poderiam passar despercebidas.

Nos bastidores políticos, uma cena paralela se desenhava. Um mês antes da assinatura, o secretário de Inovação, Alex Canziani, viajou com o governador Ratinho Jr. a Las Vegas para um encontro com executivos da Google. A agenda oficial falava em “ampliar o uso de inteligência artificial no Estado”. A assinatura do contrato, semanas depois, soou quase como um epílogo anunciado.

Enquanto isso, em Brasília, a filha do secretário, a deputada federal Luísa Canziani, assumia a presidência da Comissão Especial da Câmara que discute a regulamentação da inteligência artificial. Em abril, havia posado sorridente na sede da Google, no Vale do Silício, em uma visita bancada por entidades privadas. Sua trajetória parlamentar já a colocara lado a lado de gigantes da tecnologia: votara contra o PL das Fake News, presidira a Frente Digital, e mantinha proximidade com lobistas do setor.

O cruzamento desses dois cenários — pai articulando contratos no Paraná, filha regulando o setor em Brasília — deu ao episódio contornos de novela política. E a denúncia recebida por e-mail não apenas confirmou o que já havia sido exposto: trouxe nova luz, ainda mais dura, sobre os riscos assumidos.

Porque, no fim, não se trata apenas de planilhas e cláusulas. Trata-se do controle de informações de milhões de cidadãos. Dados de saúde, de educação, de segurança pública, de servidores. Se esses dados são o sangue digital do Estado, o contrato define quem segura a seringa.

E, ao que tudo indica, a Google ganhou um poder raro: alterar regras, impor juros, rescindir unilateralmente, limitar responsabilidades. À Celepar, e por extensão ao Paraná, coube assumir riscos desproporcionais, como quem aposta o patrimônio público em um jogo cujo baralho foi embaralhado pelo próprio adversário.

O Paraná segue vendendo a imagem de “estado mais inovador do Brasil”. Mas as cláusulas do contrato — e as denúncias que agora vêm à tona — sugerem que essa inovação pode estar sendo construída sobre um alicerce frágil, inclinado. No silêncio das salas onde esses papéis foram assinados, não havia aplausos nem discursos: apenas a caneta deslizando no papel, enquanto sombras discretas se alongavam pelo chão.

 

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