Anestésico usado em homem que morreu após tatuagem tinha registro de veterinária no rótulo, indica investigação
Por Giuliano Saito
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De acordo com delegado, veterinária prestou depoimento e negou conhecer tatuador investigado; homem pode responder por falsidade ideológica e homicídio culposo. Polícia investiga morte de homem durante sessão de tatuagem, em Curitiba A investigação sobre a morte de David Luiz Porto Santos, após uma sessão de tatuagem em Curitiba, indica que o spray anestésico de lidocaína usado durante o procedimento tinha no rótulo a prescrição de uma médica veterinária. David morreu em 2021, segundo a família, após ter contato com a substância ministrada pelo tatuador José Manoel Vieira de Almeida no braço esquerdo do cliente. Laudo do Instituto Médico-Legal (IML) afirmou que a causa da morte é indeterminada, mas que exames periciais sugerem "intoxicação exógena por lidocaína”. Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Telegram A investigação do caso é conduzida pelo delegado Wallace de Oliveira Brito, do 6º Distrito Policial em Curitiba. De acordo com o delegado, a médica veterinária cujo registro profissional está no rótulo do spray prestou depoimento e disse não conhecer o tatuador. Destacou, também, que a profissão dela não permite prescrição de remédio para humanos. Ao delegado, a mulher também afirmou que não teve nenhum carimbo ou receituário furtado. Segundo rótulo, spray de lidocaína estava no prazo de validade quando foi utilizado Reprodução Na quinta-feira (16) o tatuador foi ouvido pela segunda vez e permaneceu em silêncio. O g1 aguarda retorno da defesa de José Manoel para comentar a origem da medicação. Anteriormente, em nota, a advogada Graciele Queiroz e o advogado Jefferson Silva, que defendem o tatuador, disseram que não houve irregularidade na aplicação do medicamento e destacaram que José Manoel tem sete anos de atuação no mercado. Em nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou ser "vedada aos tatuadores a prescrição de quaisquer medicamentos como anestésicos aos seus clientes, uma vez que somente profissionais de saúde podem prescrevê-los". A Anvisa também destacou que, na bula da lidocaína, está descrito que a aplicação deve ser feita por profissionais da saúde e que a medicação deve ser utilizada em ambiente hospitalar. Segundo resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), a aplicação de anestesias pode ser feita apenas por algumas categorias de profissionais. No caso de anestésicos, o Conselho Regional de Medicina (CRM-PR) destacou que o uso dos medicamentos não pode invadir a competência médica, e que a aplicação de cremes anestésicos deve ser feita sob orientação. Investigação De acordo com o delegado, o inquérito que investiga a morte de David continua aberto e deve ser concluído ainda em fevereiro. José Manoel pode ser indiciado por homicídio culposo, quando não há a intenção de matar, além de falsidade ideológica, caso não comprove a origem do medicamento e a polícia entenda que o anestésico pode ter sido obtido com receita falsa. Pela legislação, a venda e manipulação de lidocaína depende de receita médica. A substância aplicada no corpo do tatuador foi de uso tópico, em forma de spray, com dose de 20%, de acordo com a polícia. David tinha 33 anos e, segundo a família, fazia a primeira tatuagem da vida, "fechando" um dos braços. A sessão, que aconteceu em 27 de agosto, começou durante a manhã e terminou por volta de 21h, após o homem passar mal, segundo o inquérito. Ele morreu pouco tempo depois. Leia também: Entrevista: Novo juiz da Lava Jato quer fim do espetáculo e resgate da neutralidade VÍDEO: Câmera registra suspeito atirando contra gato no Paraná; polícia faz buscas Mega-Sena: Aposta de Paranaguá ganha prêmio de mais de R$ 17 milhões Responsável por farmácia de manipulação também foi ouvida De acordo com a investigação policial, a responsável pela farmácia de manipulação que aparece no rótulo do medicamento também foi ouvida. Ao delegado Wallace de Oliveira Brito, ela reforçou que o anestésico precisa de receita para ser vendido, mas que para a distribuição não é necessária retenção do documento por não ser um medicamento controlado, conforme portaria do Ministério da Saúde. Por isso, ela disse que a farmácia não tem arquivada a receita que José Manoel utilizou para adquirir o anestésico. Laudo contestou concentração do medicamento O laudo pericial do IML também contestou a porcentagem de lidocaína presente no medicamento aplicado em David. O documento diz que “as medicações a base de lidocaína tópica são usualmente vendidas em creme a 4% e spray a 10%”, diferentemente da versão aplicada no cliente, de 20%. “O perito não encontrou na literatura a dose estabelecida para a solução que foi manipulada”, diz o laudo. De todas as substâncias procuradas no corpo de David, a lidocaína foi a única encontrada. À polícia, o tatuador afirmou que o medicamento foi manipulado e que apresentou receita para solicitá-lo em uma farmácia. Disse, também, que o produto estava dentro do prazo de validade. Estado de saúde da vítima David Luiz tinha 33 anos. Ele chegou a ser socorrido, mas não resistiu Reprodução O relatório do IML cita que David tinha bom desenvolvimento muscular e bom estado de nutrição, mas que, após a morte, apresentou mudanças corporais como congestão pulmonar e coração aumentado, mas não detalha se o motivo foi a lidocaína. O tatuador afirmou que, antes de fazer a tatuagem em David, o cliente assinou um termo de consentimento, no qual não declarou ter alergias ou algum problema de saúde. Marido chegou a ter convulsão, diz esposa A esposa de David, Monike Caroline de Freitas, contou à polícia que, antes de morrer, o marido teve várias reações, como pressão baixa, palidez, batimento cardíaco acelerado, fala embaralhada, veias dilatadas, perda de sentido e convulsão. Os sintomas, segundo ela, apareceram ainda no estúdio, durante a tatuagem. Monike disse ainda que as reações foram praticamente imediatas, aparecendo logo após a aplicação do medicamento. À polícia, ela afirmou que a aplicação não foi solicitada por David e que o marido não aparentava sentir dor. O tatuador afirmou, no primeiro depoimento ao delegado, que usou o spray uma única vez depois de um pedido de David. "Na hora que tava limpando o excesso [do medicamento], meu marido perguntou o que ele tinha passado, e ele [tatuador] falou que era um anestésico. Depois, ele começou a passar mal. O tatuador falou: ‘Dá sal pra ele’. O outro rapaz que tava junto deu o sal, e coloquei debaixo da língua do meu esposo. Meu marido só fazia assim [balançava a cabeça] que não tava bem. Botei a mão no peito dele e falei pro tatuador que ele tava com o peito acelerado", disse Monike à polícia. À polícia, o tatuador também destacou que prestou auxílio desde o momento em que David começou a passar mal, orientando o homem e acionando o Samu. Sem resposta rápida do socorro, o profissional disse ter levado o homem a um hospital particular de Curitiba. Afirmou, também, que ficou no local esperando notícias do cliente junto à família. O tatuador disse acreditar que o caso foi uma fatalidade e que, depois da morte, parou de usar lidocaína e qualquer tipo de anestésico em sessões de tatuagem. O que diz a lei Parecer técnico do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) explica que a aplicação de anestésicos, quaisquer que sejam, constituem ato médico. Em alguns casos, outras categorias, como dentistas, também podem utilizar as medicações. O mesmo documento ressalta que a prática de anestesia por leigos “não só é proibida, como também pode causar sequelas”. “Neste passo, tal procedimento caracteriza-se como exercício ilegal da medicina, devendo, os que assim procedem, ser denunciados à autoridade policial para que sejam tomadas as medidas cabíveis”, detalha o documento. Para a prática de médicos anestesistas, por exemplo, uma resolução do Conselho Federal de Medicina determina que para qualquer anestesia, exceto em situações de urgência e emergência, deve-se saber com antecedência “as condições clínicas do paciente, cabendo ao médico anestesista decidir sobre a realização ou não do ato anestésico”. A médica anestesista Ursula Bueno do Prado Guirro, conselheira do CRM-PR, explica que existem cremes anestésicos locais no mercado brasileiro e que tais medicações podem ser utilizadas sob orientação médica, quando se prevê dor superficial na pele. Ela ressalta, entretanto, que o uso precisa ser em pequena quantidade e em uma área limitada. "No entanto, o uso de anestésicos em creme sobre a pele apresenta riscos para a saúde como reações na pele e alergia, que podem levar a quadros graves", explica a médica. Ursula também explicou que, com este tipo de medicamento, há risco de intoxicação pelo uso excessivo ou, ainda, se utilizado na pele que não está íntegra ou sobre mucosas, o que pode levar a uma absorção maior que a esperada e causar quadros de intoxicação. Profissão não regulamentada Atualmente a profissão de tatuadores não é regulamentada, por isso, não há regras claras sobre os direitos e deveres legais dos profissionais. Na Câmara dos Deputados, um Projeto de Lei de 2006 tentou regulamentar a profissão de tatuador, mas foi arquivado. Em 2007, outra proposta de criar regras para a prática de tatuagem e piercing também foi apresentada. A última movimentação foi em 2021. O projeto está pronto para avaliação da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). O que disse a defesa do suspeito Na quarta (16), a defesa de José Manoel afirmou que “o ocorrido é trágico, entretanto, atribuir a causa morte ao tatuador José, sem que exista uma investigação completa, se demonstra uma decisão precoce, pois podem existir circunstâncias desconhecidas sobre o fato”. A defesa também destacou que a sessão de tatuagem foi dividida em duas partes e que, no segundo momento, David pediu “a aplicação da lidocaína para amenizar a dor”. “Salienta-se que este antes de começar a tatuagem, assinou o termo de declaração informando que não possuía nenhuma alergia pré-existente. [...] Deve-se investigar para que se possa compreender a causa morte [...] A defesa está fazendo as investigações coerentes que o caso necessita, com profissionais da saúde, uma vez que os próprios exames não demonstram a verdadeira causa morte.” Vídeos mais assistidos do g1 PR: Mais notícias do estado em g1 Paraná.
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