A nulidade de atos processuais por vícios transrescisórios e a possibilidade do exercício de sua pretensão de forma incidental
O STJ reafirma que vícios transrescisórios, como ausência de citação, podem ser reconhecidos a qualquer tempo, sem ação autônoma, em nome da efetividade processual

Por Daniel Fioreze *
Ementa: a imutabilidade da coisa julgada não impede a correção de vícios transrescisórios, que podem ser reconhecidos de forma incidental ou como questão prejudicial, sem a necessidade de ação autônoma. O STJ consolida o entendimento de que a querela nullitatis, compreendida como uma pretensão, e não como um procedimento, assegura a supremacia da instrumentalidade das formas. Essa abordagem flexível e desapegada de formalismos excessivos permite que nulidades de alta gravidade, como a ausência de citação, sejam sanadas a qualquer tempo.
O sistema jurídico processual, pautado pela busca da segurança jurídica e da efetividade da tutela jurisdicional, estabelece mecanismos para a estabilização das decisões judiciais. A coisa julgada, materializada no trânsito em julgado de uma decisão, confere imutabilidade àquilo que foi decidido, impedindo sua rediscussão. Contudo, essa imutabilidade não é absoluta, especialmente diante de vícios de gravidade extrema que comprometem a própria existência do ato processual. Tais vícios, denominados de vícios transrescisórios, superam a eficácia da coisa julgada e podem ser atacados a qualquer tempo, sem as limitações de prazo e forma impostas à ação rescisória.
A distinção entre os planos da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos é fundamental para compreender a natureza dos vícios transrescisórios. Enquanto vícios de validade ou mérito podem ser corrigidos pela ação rescisória, sujeita ao prazo decadencial de dois anos estabelecido no art. 975 do CPC, as nulidades transrescisórias, situadas no plano da existência, não se convalidam com o tempo e podem ser alegadas a qualquer momento. A ausência de citação válida é o exemplo mais emblemático dessa categoria, pois impede a formação da relação processual, tornando o processo e a sentença dele decorrente inexistentes juridicamente.
Para impugnar esses vícios, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram a querela nullitatis. Tradicionalmente, discutia-se a necessidade de uma ação autônoma e específica para veicular essa pretensão. No entanto, o STJ, em convergência interpretativa aos princípios da celeridade, economia e efetividade processual (arts. 3º, 4º, 6º e 8º do CPC), consolidou o entendimento de que a querela nullitatis deve ser compreendida como uma pretensão, e não como um procedimento específico. Essa perspectiva afasta o excessivo formalismo e permite que a nulidade de decisões transitadas em julgado eivadas de vícios transrescisórios seja invocada por diferentes meios processuais. A instrumentalidade das formas conduz ao raciocínio de que o formalismo não deve prevalecer sobre a finalidade do ato processual, especialmente quando a subsistência de um ato nulo representa grave ofensa ao sistema jurídico.
Aliás, a própria jurisprudência do STJ corrobora a amplitude dos meios pelos quais a querela nullitatis pode ser arguida. É admitida sua alegação incidental em peças defensivas, em ações declaratórias em geral, no cumprimento de sentença (art. 525, §1º, inciso I, do CPC e REsp 1.930.225/SP), em ação civil pública (REsp 1.015.133/MT) e até mesmo em mandado de segurança (RMS 14.359/MG). A possibilidade de suscitar a nulidade por meio de simples petição, a qualquer tempo, reforça a ideia de que a gravidade do vício dispensa ritos processuais complexos, desde que observados o contraditório e a ampla defesa. Neste sentido, mesmo uma ação rescisória ajuizada após o prazo decadencial, se evidenciar um vício transrescisório, deve ser remetida ao primeiro grau para ser apreciada como ação declaratória de nulidade.
A flexibilidade processual valoriza a "substância" da pretensão em detrimento da forma. Desse modo, o tribunal pode, por meio de uma interpretação lógico-sistemática da petição inicial, extrair a real intenção da parte, mesmo que não tenha sido expressa de forma clara. O julgamento não se considera "fora do pedido" quando a tutela jurisdicional concedida está implicitamente contida na essência do requerimento. Essa abordagem garante que a finalidade da ação seja alcançada, evitando que meros formalismos impeçam o acesso efetivo à justiça. No entanto, embora a forma de veiculação da querela nullitatis seja flexibilizada, a sua apreciação exige a observância de requisitos processuais imprescindíveis para a garantia do devido processo legal.
A competência para analisar a querela nullitatis, seja incidentalmente ou por ação própria, é do juízo que proferiu a decisão que se pretende declarar como nula, admitida a flexibilização nos casos de alteração da organização judiciária, situações em que é possível o julgamento pelo juízo que sucedeu aquele que proferiu o julgado tido por nulo. Claro, a validade da declaração de nulidade está condicionada à citação de todos os participantes do processo em que proferida a sentença contaminada pelo defeito transrescisório.
A questão foi novamente decidida pelo STJ, porém, agora, com argumentos específicos à tese da sobreposição da pretensão da querela nullitatis sobre a forma processual. No julgamento do REsp 2.095.463/PR, discutia-se a nulidade de uma escritura pública de cessão de direitos possessórios e benfeitorias e o cancelamento do registro de uma sentença de usucapião proferida em processo anterior, da qual as partes alegavam não terem participado. As instâncias ordinárias extinguiram o processo sem resolução do mérito por ausência de interesse de agir, ao fundamento de que a nulidade da sentença de usucapião somente poderia ser arguida por meio de ação autônoma (ação anulatória). No entanto, o STJ reformou a decisão, reconhecendo o interesse de agir e determinando o retorno dos autos ao primeiro grau para o prosseguimento do feito.
O acórdão recente do STJ demonstra, na prática, a aplicação da tese já suscitada em casos esparsos, qual seja: a flexibilidade na arguição dos vícios transrescisórios, priorizando a efetividade processual em detrimento de um formalismo excessivo. A instrumentalidade das formas orienta que o processo não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para a realização da justiça material. Em síntese, a compreensão da querela nullitatis como pretensão, e não como procedimento, representa a consolidação dos princípios da celeridade, economia e efetividade processual e permite que as nulidades de alta ofensividade ao sistema jurídico sejam corrigidas a qualquer tempo e por diversos meios.
* Daniel Fioreze, é Sócio do escritório Silva e Silva Advogados Associados e diretor do núcleo de recuperação judicial de empresas e falências. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria - RS (UFSM). Possui pós-graduação em Direito Tributário e Aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Processual Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (CEDJ). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - RS (FADISMA).
Artigo pulbicado originalmente no portal Migalhas
