Terapia gênica avança no Brasil e traz novas possibilidades de tratamento para pacientes com doenças raras
Levantamento da UFRGS aponta que país é expoente nesse tipo de tratamento entre nações de economia emergente, mas acesso ainda é dificultado pelo alto custo
Por Bruno Rodrigo

No ano de 1990, os médicos do National Institute of Health Clinical Center, nos Estados Unidos, se depararam com um caso complexo. Duas meninas de nove e quatro anos chegaram ao hospital com uma doença congênita ultrarrara chamada deficiência de adenosina desaminase (ADA, na sigla em inglês). A ADA é uma enzima produzida pelo corpo que quebra substâncias tóxicas provenientes de processos celulares naturais. Quando há uma deficiência dessa enzima, a substância tóxica se acumula no corpo e destrói os linfócitos . Na prática, pessoas com essa condição são mais suscetíveis a infecções fúngicas, bacterianas e virais recorrentes. Sem tratamento, muitas crianças nascidas com deficiência de ADA não sobrevivem até os dois anos de idade.
Desde 1985, cientistas do instituto estadunidense se dedicavam a uma série de estudos e testes acerca de uma nova forma de tratamento da deficiência de ADA. A ideia consistia na transferência de genes modificados com a quantidade correta de ADA para os glóbulos brancos de pacientes que apresentavam a condição. Apesar de estudado há bastante tempo, o tratamento nunca havia sido aplicado em um paciente humano até aquele momento.
Foi então que a equipe médica decidiu realizar o primeiro tratamento em humanos do que viria a ser conhecido como terapia gênica. Ao longo de dois anos, as duas meninas receberam infusões de células geneticamente corrigidas em seus glóbulos brancos a fim de tratar a deficiência de ADA. Em 1993, após bons resultados nas primeiras pacientes, o mesmo tratamento começou a ser usado em recém-nascidos com a condição, consolidando o primeiro exemplo de terapia gênica no mundo.
Mas, afinal, o que é terapia gênica?
Em termos gerais, a terapia gênica consiste em tratamentos que utilizam o material genético e suas modificações para tratar ou prevenir doenças. Nessa técnica, o que ocorre é a substituição, dentro de células específicas, dos genes defeituosos que causam a condição por genes saudáveis, suavizando ou eliminando os efeitos de determinadas doenças. Basicamente, genes terapêuticos são utilizados no lugar de drogas para o tratamento da condição.
Existem dois métodos de introdução de genes saudáveis nas células para terapia gênica. O primeiro é a técnica in vivo, que consiste na aplicação direta no organismo do paciente. A segunda técnica, conhecida como ex vivo, coleta as células do corpo, realiza as modificações necessárias em laboratório e depois transplanta as células de volta para o paciente.
Apesar de a técnica ter apresentado avanços significativos desde sua primeira utilização, a terapia gênica ainda é considerada relativamente nova no campo da saúde. No Brasil, o primeiro registro de terapia gênica só foi aprovado pela Anvisa em julho de 2020.
Mesmo assim, a evolução corre a passos largos: após quase cinco anos da primeira aprovação, já são nove terapias gênicas autorizadas no Brasil. E a perspectiva de cientistas é de um crescimento ainda maior nos próximos anos — segundo o médico neurologista e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS Jonas Saute, espera-se que, até 2030, cerca de 60 tratamentos desse tipo sejam aprovados no mundo.
Brasil é expoente na terapia gênica entre países emergentes
Um mapeamento publicado pela UFRGS em março deste ano revela que o Brasil é o 12.º país com mais estudos clínicos sobre terapia gênica no mundo e o primeiro entre países latinoamericanos. O mesmo levantamento apontou que a maioria dos estudos clínicos sendo conduzidos no Brasil estavam em fases avançadas de desenvolvimento.
Na UFRGS, desde o ano passado um grupo liderado por Jonas trabalha nos estudos para desenvolvimento de uma terapia gênica para a doença SPG76, uma condição degenerativa que, ao longo de vários anos, debilita a mobilidade das pernas, a coordenação motora e a fala dos pacientes afetados. Além do objetivo final de encontrar um tratamento eficaz, a meta do grupo é reforçar o protagonismo brasileiro no estudo de terapias gênicas no cenário mundial. “A ideia é desenvolver um produto com todas as etapas realizadas nacionalmente”, explica o pesquisador.
A doença faz parte do grupo SPG (sigla em inglês para paraparesia espástica hereditária), um conjunto de doenças neurológicas degenerativas raras que se comportam de maneira muito similar umas às outras. A nomenclatura da doença estudada por Jonas vem do fato de que essa foi a 76.ª do grupo a ser descrita na medicina — ao todo, atualmente já foram descritas 93. Por conta da similaridade entre elas, o único jeito de diagnosticar exatamente qual tipo de SPG acomete cada paciente é através de exames genéticos, como o sequenciamento de exoma, teste que proporciona uma visão detalhada do código genético, permitindo identificar alterações no DNA.
A SPG76 foi escolhida para o estudo por uma série de fatores. Um deles foi a observação da aparente alta recorrência da doença no Brasil em relação a outros países. Outro motivo, segundo Jonas, foi a escolha de uma doença cujo tratamento ainda não estivesse sendo estudado. “A gente se apropria um pouco mais da tecnologia para conseguir de fato ter um protagonismo no campo e também faz com que os pacientes brasileiros não sejam deixados de lado”, explica.
O professor comenta, ainda, que a similaridade entre várias doenças do grupo SPG é benéfica no cenário de estudos de possíveis curas e tratamentos — com a disponibilidade de uma terapia gênica para a SPG76, soluções para outras doenças do grupo poderiam ser encontradas com mais facilidade.
A ideia do estudo consiste na utilização de um vetor viral para injetar a proteína que falta aos pacientes diretamente nas células, utilizando o método in vivo. A pesquisa conta com etapas laboratoriais e clínicas, para que os cientistas entendam melhor como a doença se comporta ao longo do tempo e a evolução dos sintomas após a aplicação da terapia.
Apesar de se tratar de um grupo de doenças raras, os pesquisadores envolvidos no estudo reforçam a importância da busca por uma cura e tratamento para as doenças SPG. “Individualmente, as doenças são raras, mas coletivamente elas são comuns”, explica Nevton da Rosa, pós-doutorando que faz parte do grupo liderado por Jonas. Não há um número exato, mas estima-se que existam entre 5.000 e 8.000 doenças raras identificadas no mundo e que cerca de 13 milhões de brasileiros sejam acometidos por alguma delas.
Atualmente, a pesquisa se encontra em seus estágios iniciais. Caso tudo corra como previsto, a próxima fase é a de testes em camundongos transgênicos, animais geneticamente modificados vindos dos Estados Unidos que, por ora, estão no Centro de Reprodução e Experimentação de Animais de Laboratório da UFRGS (Creal).
A médica veterinária Fernanda de Mello, responsável pelos animais, explica que o alteramento genético dos camundongos é necessário para emular a condição estudada. “Ele pode ter uma inserção ou supressão de um gene, e isso causa uma modificação fisiológica que pode produzir um quadro similar à doença que se estuda”, conta.
Desafios financeiros e de infraestrutura freiam avanços maiores
Mesmo com as recentes evoluções, Jonas destaca que o crescimento brasileiro no campo da terapia gênica passa por inúmeros desafios, a maioria deles de natureza econômica. Não é novidade: ciência, saúde e inovação, especialmente quando combinadas, exigem um aporte financeiro considerável. No caso da terapia gênica, a potência dessa máxima se expande.
Uma única dose da última terapia gênica aprovada pela Anvisa, utilizada para tratar distrofia muscular de Duchenne, custa R$ 17 milhões — através de um acordo com a farmacêutica dona da patente, o Ministério da Saúde adquiriu cada dose por R$ 11 milhões. A maioria das terapias gênicas são comercializadas por valores irreais para famílias comuns. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) pode fazer a ponte entre os pacientes e as farmacêuticas, mas Jonas ressalta que é importante que haja planejamento financeiro estatal para que isso seja economicamente viável.
“Com esses valores, uma única doença vai gerar um impacto possivelmente bilionário pro país. No cenário do SUS, é urgente entendermos como possibilitar o acesso a esses medicamentos”, explica o pesquisador.
“Pior do que não existir o tratamento, é existir e o paciente não conseguir acessar por conta do valor”
Jonas Saute
O Projeto de Lei 3499/2021, que tramita na Câmara dos Deputados, prevê que haja regras diferentes para a precificação de tratamentos de terapia gênica no Brasil a fim de combater preços abusivos por parte das farmacêuticas. “Não é muito transparente o custo do desenvolvimento desses remédios”, aponta Jonas.
Além disso, existe um problema de capacitação de profissionais da área da saúde para entender e diagnosticar doenças genéticas raras que poderiam ser tratadas com terapias gênicas. Segundo Jonas, essa dificuldade é fruto do pouco espaço reservado ao estudo desse tipo de condição na formação desses profissionais.
Nevton, no entanto, ressalta que esse é um problema que afeta profissionais do mundo todo, não apenas no Brasil.
“Pela raridade de cada uma das alterações, muitos médicos não conseguem atingir o diagnóstico correto, e o paciente tem que passar por uma uma odisseia diagnóstica muito grande”
Nevton da Rosa
Para tentar corrigir essa falha, o Governo Federal publicou, em 2014, uma portaria que institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, criando serviços de referência, capacitando profissionais e ampliando a atenção a pacientes com esse tipo de condição.
Conforme Jonas, o melhor método para que o Brasil possa crescer ainda mais no segmento de terapias gênicas e mais pacientes possam ter acesso aos tratamentos com um custo menor aos cofres públicos é o fomento à pesquisa feita inteiramente no país, como a que é desenvolvida na UFRGS. “A nossa lógica é que, fazendo tudo no Brasil, tem um custo muito mais baixo do que importar tecnologia de outros países. É um princípio de autossuficiência”, comenta. “Esse trabalho vai trazer a base para muitos outros. Por mais que desenvolver o medicamento seja importante pros pacientes, isso vai trazer não só para a gente, mas para o resto da população, benefícios que a gente consegue aplicar durante o dia a dia.”