Mais de 80% dos adolescentes têm rotina de sono desregulada, diz estudo
Pesquisa de doutorado investiga como o desalinhamento entre relógio biológico e rotina, conhecido como jet lag social, afeta a saúde e o bem-estar
Por Bruno Rodrigo

*Com informações da UFRGS
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Cardiologia e Ciências Cardiovasculares da UFRGS, Nina Nayara Martins tem-se dedicado a estudar um tema alarmante e pouco debatido: o descompasso entre o relógio biológico dos adolescentes e as demandas sociais. A pesquisa de Nina gerou um artigo publicado no periódico Sleep Health, que aponta que o fenômeno, chamado de jet lag social, atinge 83% dos jovens e pode acarretar sérias consequências para a saúde física e mental desse grupo.
Nutricionista e mestra em Oncologia e Ciências Médicas, Nina buscava, durante a pandemia, um lugar para dar continuidade aos estudos. Foi então que a paraense encontrou a UFRGS: aqui conheceu o professor Felipe Vogt Cureau, que a apresentou ao Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA), projeto coordenado no Rio Grande do Sul pela professora Beatriz D’Agord Schaan.
O ERICA é um dos maiores estudos sobre a saúde de adolescentes no Brasil, com a participação de mais de 70 mil jovens, entre 12 e 17 anos, de todas as regiões do país. Elaborado em 2008 e com a coleta de dados realizada entre 2013 e 2014, o projeto se consolidou como uma fonte rica e confiável de informações sobre os fatores de risco cardiovascular na adolescência. A busca por novas abordagens e o interesse pelo tema motivaram Nina a procurar Beatriz para aprofundar o estudo do jet lag social, tornando-o um dos subprodutos do ERICA.
“Os adolescentes tendem a dormir mais tarde e acordar mais tarde nos dias de folga, compensando a privação de sono da semana, e esse desalinhamento pode trazer impactos negativos para a saúde”
Beatriz D’Agord Schaan
O jet lag social ocorre quando há um descompasso entre o relógio biológico e as obrigações sociais do indivíduo, como horários escolares ou de trabalho. Diferente da insônia, na qual a pessoa não consegue dormir, quem sofre com o jet lag sente sono, mas no horário errado.
Esse fenômeno é agravado pelo modelo educacional brasileiro, em que a maioria dos estudantes precisa acordar cedo para frequentar aulas matutinas, desrespeitando o ritmo natural de muitos jovens. “Se não houver mudanças, essa geração pode enfrentar consequências graves na saúde cardiovascular e metabólica”, alerta Nina. Além disso, problemas como estresse, ansiedade e baixa produtividade são efeitos colaterais do fenômeno, que também pode aumentar os custos para o sistema de saúde.
Fatores de risco do jet lag social
A pesquisa utilizou dados de 64 mil jovens inseridos no ERICA e identificou que adolescentes mais velhos, do sexo feminino e estudantes de escolas particulares são os mais propensos a apresentar jet lag social. Além disso, o estudo evidenciou que o uso excessivo de telas é um dos principais fatores de risco: aqueles que passam mais de seis horas diárias em frente a dispositivos eletrônicos têm maior prevalência do fenômeno, especialmente pelo impacto da luz azul na regulação do ciclo do sono.
Felipe aponta a necessidade de monitoramento contínuo desses adolescentes. “Precisamos de dados mais recentes para avaliar se essa tendência tem-se intensificado com o aumento do uso de dispositivos móveis e com mudanças nos hábitos sociais”, acrescenta.
Principais descobertas do estudo
A pesquisa de Nina Nayara Martins analisou dados de mais de 64 mil adolescentes brasileiros e revelou que:






Impactos na saúde pública
Nina destaca que a saúde pública brasileira ainda não está preparada para lidar com os impactos do jet lag social. Caso a tendência atual se mantenha, um número significativo de adultos jovens pode desenvolver doenças crônicas precocemente, sobrecarregando o sistema de saúde e afetando a economia brasileira.
“Esse fenômeno vai refletir na saúde e na economia, porque a gente não vai ter mão de obra e não vai ter capital também. Se continuarem assim, vai ser um número muito grande de pessoas que vão sofrer impactos do jet lag, seja da parte psicológica ou da parte cognitiva. Vai ter um impacto também no governo, que vai ter que dirigir recursos para poder atender esse público que está sendo incapacitado por causa dessas doenças. Hoje não vejo preparo para lidar com a situação, mas eu espero que esse cenário no futuro se modifique”
Nina Nayara Martins
Além disso, ela alerta que a recente proibição de uso de celulares nas escolas pode não ser eficaz para combater o jet lag, pois os jovens podem compensar essa restrição usando os dispositivos por mais tempo fora do ambiente escolar. Em vez disso, defende a criação de políticas que eduquem para um uso mais consciente da tecnologia. “Eu consigo ver o benefício disso [proibição dos celulares nas escolas] em outros aspectos cognitivos, só que eu penso que pro jet lag social talvez não seja a melhor escolha. Você ouviu falar que tudo aquilo que a gente proíbe o nosso cérebro quer fazer? Então, se você cortar um horário de 4 horas que o adolescente poderia utilizar aquele telefone, ele vai querer fazer uma compensação – e essa compensação é que me preocupa.”
A pesquisadora enfatiza que a mudança de hábitos deve começar dentro de casa. “Os adolescentes reproduzem os hábitos da família, então, se os pais têm um sono desregulado e alimentação inadequada, é provável que os filhos sigam esse padrão”, explica. Nina acredita na importância de uma abordagem multidisciplinar no combate ao problema, envolvendo médicos, nutricionistas, psicólogos e profissionais da educação física para auxiliar na construção de uma rotina mais saudável para os jovens.


Possíveis soluções
Para mitigar os efeitos do jet lag social, o estudo sugere mudanças estruturais no sistema educacional, como a possibilidade de um início mais tardio das aulas, alinhando os horários escolares ao relógio biológico dos adolescentes. Estudos internacionais indicam que atrasar o início das aulas pode melhorar a concentração e o aprendizado.
“A aula começa às 7h15, 7h30, e já se discutiu isso em vários outros artigos, sobre diminuir esse horário. Nossa sociedade vai continuar evoluindo dessa forma moderna, com celulares e redes sociais. Então talvez seja mais propício fazer essa adequação de horário para tentar diminuir esse impacto”
Nina Nayara Martins
Como prevenir o jet lag social?
Diante dos dados alarmantes, Nina sugere algumas medidas para mitigar os efeitos do jet lag social nos adolescentes, como:




Medidas como campanhas educativas sobre a importância do sono, restrição do uso de telas próximo ao horário de dormir e incentivo à prática de atividade física podem ajudar a minimizar os efeitos do jet lag social. Segundo Beatriz, é necessário adotar abordagens integradas. “Precisamos envolver pais, professores e profissionais de saúde na conscientização sobre a relevância do sono na adolescência. Pequenos ajustes na rotina podem trazer benefícios significativos para a saúde dessa população.”
Já Felipe acrescenta que um esforço coletivo é fundamental. “O jet lag social não é apenas um problema individual, mas o reflexo de um estilo de vida moderno que prioriza a conectividade e o entretenimento em detrimento do descanso adequado. Precisamos encontrar um equilíbrio para que os jovens tenham um desenvolvimento saudável”, enfatiza.
