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Explosão de habeas corpus reflete crise de múltiplas causas no Sistema de Justiça

O avanço exponencial no uso desse instrumento jurídico impõe reflexões urgentes

Por Gazeta do Paraná

Explosão de habeas corpus reflete crise de múltiplas causas no Sistema de Justiça Créditos: Gustavo Lima/STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) atingiu, há poucas semanas, uma marca simbólica e, ao mesmo tempo, inquietante: um milhão de habeas corpus recebidos desde a sua instalação, em 1989.

O avanço exponencial no uso desse instrumento jurídico impõe reflexões urgentes: há uma demanda crescente por proteção de direitos fundamentais e um amadurecimento no acesso à Justiça, ou o que se vê é o emprego indiscriminado do habeas corpus, sintoma de falhas que empurram para os tribunais superiores a correção de distorções estruturais? A resposta está longe de ser unânime. Magistrados, membros do Ministério Público (MP), advogados e defensores públicos observam o fenômeno a partir de ângulos diversos, mas uma coisa é certa: o debate convida à revisão crítica do Sistema de Justiça criminal.

Em jogo está não apenas a eficiência da máquina judiciária, mas a própria ideia de justiça em um país que ainda lida com profundas desigualdades. Entre a garantia dos direitos fundamentais e a necessidade de um Judiciário funcional, o habeas corpus continua a ser, mais do que nunca, um termômetro da democracia brasileira.

Uso do habeas corpus como substitutivo recursal

A avalanche de habeas corpus no STJ não é, conforme o desembargador e doutrinador Guilherme de Souza Nucci, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), um problema com causa única ou responsabilidade isolada. Para ele, trata-se de um reflexo complexo de uma engrenagem que funciona com desalinho. Nucci aponta fatores estruturais como o crescimento populacional, a desigualdade social e o avanço da criminalidade como os verdadeiros motores desse cenário, que acaba sobrecarregando o Sistema de Justiça.

No campo processual, ele observa que o habeas corpus vem sendo utilizado, de forma recorrente, como um atalho por advogados que buscam contornar a complexidade dos recursos ordinários. Essa prática, segundo o desembargador, agrava o fenômeno que hoje sobrecarrega o sistema judicial brasileiro. Ele alerta que o uso inadequado do habeas corpus como substituto de recursos previstos no ordenamento jurídico não apenas contribui para o congestionamento dos tribunais superiores, mas também enfraquece o valor constitucional do instituto, originalmente concebido para situações verdadeiramente excepcionais.

Nucci aponta que é comum a impetração de habeas corpus em paralelo à interposição de recursos cabíveis, como o agravo, o que gera distorções processuais. Na visão do magistrado, o enfrentamento desse quadro exige uma resposta institucional articulada entre todas as instâncias do Judiciário: "É fundamental que os tribunais estaduais e regionais federais assumam a postura firme de não conhecer do habeas corpus quando houver recurso próprio cabível e a decisão não for flagrantemente ilegal. Quando isso for feito de forma reiterada, os advogados compreenderão que não é mais possível contornar o sistema recursal com o uso indevido do HC."

O pensamento é compartilhado pelo defensor público Marcos Paulo Dutra, coordenador de Defesa Criminal e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que vê um paradoxo na jurisprudência atual: embora o STJ tenha consolidado o entendimento de que o habeas corpus não pode substituir recursos ordinários ou especiais, muitos pedidos ainda são aceitos. "Há magistrados que concedem a ordem de ofício diante de decisões teratológicas, o que, embora compreensível em certos contextos, acaba incentivando a manutenção da prática e reforça a ideia de que o HC pode sempre ser uma via alternativa", observa.

Dutra enfatiza que essa ambiguidade jurisprudencial contribui para a banalização do habeas corpus, desviando-o de sua finalidade essencial: a proteção contra abusos e ilegalidades evidentes. Em sua opinião, é necessário um compromisso coletivo com o rigor técnico e com o uso responsável dos instrumentos processuais, de modo a garantir a celeridade e a eficiência do sistema, e também a efetividade da tutela das liberdades individuais.

Diante de um cenário marcado pela crescente fragmentação decisória, o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma do STJ, aponta que outra das principais causas do problema é o desrespeito aos precedentes dos tribunais superiores – os quais deveriam justamente garantir coesão e previsibilidade. A ausência de um compromisso sistemático com a jurisprudência consolidada transforma o sistema, nas palavras do ministro, em uma verdadeira "justiça lotérica".

"Um juiz decide de uma maneira em determinada vara; outro, em situação idêntica, adota entendimento completamente oposto", alerta Dantas. O resultado, ele afirma, é um cenário em que decisões judiciais perdem seu caráter de estabilidade, transformando-se em apostas cujo desfecho depende da roleta institucional de quem julga. Nesse sentido, a disciplina na observância dos precedentes, segundo o ministro, não é uma mera formalidade processual, mas um pilar da segurança jurídica.

Ascom/STJ