Estudo apresenta protocolo inédito para tratamento de depressão com uso de cetamina
Pesquisadores do PPG Bioquímica constataram que pacientes que utilizaram a substância em baixas doses apresentaram diminuição dos sintomas
Por Da Redação

No país em que cerca de 11 milhões de pessoas convivem com a depressão, uma abordagem inédita surge como alternativa promissora para diagnosticar e tratar a doença. O estudo propõe o uso de biomarcadores inflamatórios para identificar subgrupos específicos de pacientes e a aplicação subcutânea da cetamina como tratamento de efeito rápido. A proposta está estruturada em um protocolo padronizado, fundamentado em evidências científicas e prática clínica.
“Entender a doença mental como uma perna quebrada.” Foi com essa metáfora que a pesquisadora Ana Paula Anzolin encontrou sentido em dedicar sua tese de doutorado, no Programa de Pós-graduação em Bioquímica da UFRGS, ao estudo da depressão, que está entre as doenças com maior crescimento no país. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem a maior prevalência de depressão na América Latina e está entre os que mais registram casos em todo o continente americano.
Ana Paula conta que o grupo de pesquisa que ela integra já observava evidências de que o Transtorno Depressivo Maior (TDM), em pacientes com início antes dos 30 anos, poderia ter origem orgânica. Para investigar essa questão, os pesquisadores analisaram 234 indivíduos, divididos entre início precoce e tardio da depressão. Os resultados indicaram níveis elevados de interleucinas pró-inflamatórias nos casos de diagnóstico precoce, associados também a índices mais altos de ideação suicida.
Em paralelo, o grupo também estudava o efeito da cetamina, utilizada como anestésico. Nos resultados dos estudos, verificou-se que, em baixas doses, ela também pode ser eficaz no tratamento da depressão e da ideação suicida, sempre que administrada por profissionais da área e em ambiente hospitalar.
A partir desses apontamentos, foram selecionados 26 pacientes oriundos dos Hospitais de Clínicas e Moinhos de Vento, que foram inseridos em um protocolo naturalístico. O protocolo consiste em criar um padrão, uma série de estágios que, com base científica e prática clínica, possam alcançar um resultado e serem replicados em contextos públicos.
Resultados e descobertas
Já nas primeiras aplicações do protocolo, os pacientes apresentaram uma queda expressiva nos escores de ideação suicida, medida pela escala Columbia. Essa resposta rápida é um dos principais diferenciais da cetamina em comparação aos antidepressivos convencionais, que costumam levar semanas para surtir efeito. Também foi observada uma redução nos escores da escala MADRS, utilizada para avaliar sintomas depressivos. Além dos números, os relatos apontaram melhoras funcionais significativas, como a retomada do sono, da alimentação e do convívio social.
Paralelamente, está em andamento uma análise proteômica, técnica que permite identificar e quantificar proteínas em amostras biológicas, para investigar possíveis alterações associadas à inflamação e à resposta antidepressiva. “Teve uma mãe que nos disse: ‘Vocês devolveram a minha filha’. Isso é algo que a ciência precisa escutar também”, comenta Ana Paula.
Mas por que a aplicação subcutânea da cetamina?
Por aliar acessibilidade, estudos prévios e segurança prática, o método de aplicação escolhido foi o subcutâneo, ao invés de outras formas mais utilizadas, como o modelo intravenoso . Em termos de custo, a administração subcutânea se mostrou mais barata e simples, especialmente em contextos com recursos limitados. Estudos internacionais, que serviram de base para a construção do protocolo, também apontavam a eficácia dessa via. Do ponto de vista da segurança, o método exige menos estrutura hospitalar e pode ser realizado com segurança, desde que conduzido por profissionais capacitados.
Implicações do tratamento
Durante o estudo, os pesquisadores também registraram a primeira descrição na literatura científica de reação alérgica à cetamina via subcutânea. Um paciente apresentou urticária no tronco e na face após uma das aplicações, mas o caso foi tratado com prednisolona e não teve desdobramentos mais graves.
Outro ponto de atenção foi a janela terapêutica estreita da substância. Doses acima do necessário podem provocar efeitos anestésicos, o que exige ajuste preciso e acompanhamento contínuo. Além disso, como a cetamina pode desencadear efeitos psicoativos e dissociativos, principalmente em doses mais elevadas, a equipe também se preocupou em oferecer um ambiente acolhedor durante o tratamento.
“Tinha muito estudo com cetamina, mas sem um protocolo claro. Cada um fazia de um jeito. A nossa ideia era tentar padronizar, oferecer um caminho viável e seguro”
Ana Paula Anzolin
A autora da tese também destaca as dificuldades enfrentadas pela equipe de pesquisa, como a ausência de um protocolo padronizado semelhante. Diante da necessidade de se tornarem pioneiros, a equipe se motivou a transformar em realidade o que inicialmente imaginavam produzir.
Enquanto os estudos sobre essa doença, que continua a se expandir no cenário contemporâneo, avançam, alternativas como essa se destacam como uma descoberta para a saúde física e mental da população. Quando questionada sobre a possibilidade de a prática ser replicada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Ana Paula afirma que a pesquisa propõe um protocolo viável e mais acessível, destacando que ele pode ser implementado, embora ainda não tenha sido realizado nada a respeito.
“Sempre quis fazer algo que pudesse chegar em quem precisa. A tese é sobre isso: transformar sofrimento em cuidado, com base na ciência”
Ana Paula Anzolin
A tese busca abrir caminho para uma prática segura e padronizada, com base científica e aplicabilidade prática. A autora vê a ciência como uma forma de contribuir diretamente para a dignidade das pessoas que sofrem psicologicamente e que, muitas vezes, não veem a saída para este sentimento.