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Espécie de caracol "esquecida" pela ciência tem presença ampla no Brasil

Pouco abordado na literatura, caracol-mago agora ganhou nome e sobrenome

Por Da Redação

Espécie de caracol Créditos: Arquivo pessoal/Rafael Rosa

Pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP revisitaram uma espécie de caracol “escondida” aos olhos da ciência. Descrito pela primeira vez em 1827, Drymaeus magus, popularmente conhecido como caracol-mago, contava apenas com duas ilustrações, uma concha fotografada e uma antiga descrição em latim. O estudo revelou que, na verdade, o molusco é comum e amplamente distribuído no Sudeste do Brasil.

Por meio de técnicas avançadas de tomografia computadorizada, o grupo realizou uma extensa redescrição de D. magus, incluindo novos dados sobre sua morfologia e anatomia. Unindo essa análise com registros provenientes do iNaturalist – plataforma de ciência cidadã -, foi conduzida a maior revisão taxonômica da subfamília Peltellinae na história: pela primeira vez, o caracol-mago foi colocado em uma estrutura filogenética.

O primeiro autor do artigo é Rafael Rosa, mestrando em Zoologia no Instituto de Biociências (IB) da USP. Durante sua graduação em Ciências Biológicas, Rafael caminhava pelo campus de Ribeirão Preto quando avistou o animal desconhecido. Intrigado com o mistério da espécie, ele tomou a iniciativa de investigar suas características e hábitat. “Nos deparamos com essa espécie cuja informação era rarefeita na literatura, então começamos uma jornada para tentar preencher as lacunas”, relata. Essa reforma no conhecimento das relações evolutivas de gastrópodes garantiu a publicação do artigo na Zoological Journal of the Linnean Society, revista da Universidade de Oxford.

História escondida

Drymaeus magus foi originalmente descrito no Testacea fluviatilia, tratado elaborado pelo naturalista Johann Baptist von Spix após expedição pelo Brasil entre 1817 e 1820. O objetivo era descrever as novas espécies de moluscos terrestres e de água doce encontradas, mas o pesquisador faleceu em 1826 e deixou seu trabalho inacabado. Em 1827, o tratado foi concluído pelo historiador natural Moritz Wagner, que alterou e reinterpretou algumas das espécies propostas por Spix. A descrição oficial foi baseada em uma concha vazia, fornecendo apenas informações sobre cor, perfil das espirais e morfologia, e a localidade-tipo (local geográfico onde foi coletado o exemplar-tipo) da espécie foi determinada como Maranhão e Piauí.

Posteriormente, em 1898, o malacólogo (especialista em malacologia, ramo da zoologia que estuda os moluscos) americano Henry Augustus Pilsbry citou D. Magus como a espécie “há muito tempo perdida de Wagner”. Ele renovou a descrição original com base em uma nova concha coletada em São Paulo: Pilsbry percebeu que a espécie era semelhante ao Drymaeus papyraceus, e o registrou informalmente desta forma.

“O D. papyraceus era uma espécie muito parecida e muito mais bem documentada na literatura”, reflete Daniel Cavallari, coautor do estudo e mestre em Sistemática, Taxonomia Animal e Biodiversidade pelo Museu de Zoologia (MZ) da USP. Após esta inovação, nenhum outro espécime foi coletado nas localidades-tipo, e poucos registros em São Paulo e Minas Gerais surgiram ao longo dos anos. 

Segundo os cientistas, a taxonomia do gênero Drymaeus foi prejudicada por alguns empecilhos: suas espécies são frequentemente distinguidas apenas com base nas conchas, e não há dados genéticos para descrevê-las. “Existe uma diversidade muito grande de moluscos, muito maior do que de mamíferos ou de aves”, comenta Rafael. “Há poucos pesquisadores em caracóis terrestres no Brasil, e sabe-se muito pouco a respeito da anatomia para além da concha.” Algumas espécies têm conchas muito semelhantes, propiciando erros se a identificação não for acompanhada de um espécime vivo. 

Por meio de recursos modernos, como a tomografia computadorizada, os pesquisadores consolidam traços específicos do caracol-mago na literatura. Comparado a D. papyraceus, seu tamanho é um pouco menor e sua coloração corporal é mais camuflada em ambientes escuros. 

Para construir a filogenia da espécie, os pesquisadores utilizaram o sequenciamento de DNA tendo como base marcadores moleculares (ou o DNA barcoding). Esse método é capaz de diferenciar espécies e identificar organismos vivos através de “códigos de barra”, gerados pela combinação entre as bases de nucleotídeos. 

Os pesquisadores descobriram que há dois morfos diferentes para a espécie em questão. O morfo típico é maior, tem uma concha mais opaca e manchas escuras contínuas, enquanto o morfo secundário tem coloração mais intensa, manchas descontínuas e um umbigo avermelhado. Entretanto, o barcoding de ambos os exemplares foi quase idêntico, indicando que ocorre um fluxo gênico entre duas populações de uma mesma espécie. “Muitas espécies são descritas com base em diferenças óbvias de aparência”, diz Daniel. “Sem as ferramentas atuais, a chance de detectar um morfotipo diferente e descrevê-lo com outra espécie era muito grande.” 

Rafael também explica que a descrição original tinha problemas em relação à localização, o que pode ter gerado dúvidas e dificuldades na identificação. Agora é possível afirmar que o D. magus tem mais afinidade com áreas da Mata Atlântica e Cerrado do Sudeste, caracterizadas por florestas semidecíduas sazonais, savanas e zonas de transição.

Problema antigo, técnicas modernas

Segundo os cientistas, o maior diferencial do trabalho foi a atualização das ferramentas de pesquisa. “Foi um trabalho naturalista com técnicas modernas: utilizamos dispositivos supertecnológicos para resolver um problema clássico da ciência”, comenta Rafael.

A tomografia computadorizada permitiu uma reconstrução anatômica em 3D dos principais órgãos e sistemas de D. magus, que se tornou a reconstrução mais completa de um caracol terrestre até os dias de hoje. “Nunca foi feita uma anatomia para gastrópodes no nível de detalhe que fizemos”, frisa Daniel. A tomografia é uma alternativa mais rápida e eficiente aos métodos tradicionais de dissecção, pois causa menos dano aos espécimes e permite sua utilização para estudos por mais tempo. “Quebramos uma fronteira inédita no campo de pesquisa em moluscos.”

A microscopia  eletrônica de varredura foi essencial para a visualização e caracterização da morfologia radular — estrutura dos dentes que compõem a rádula, órgão semelhante a uma língua que os moluscos utilizam para alimentação. A partir dessas informações, os pesquisadores construíram uma anatomia comparada com outras espécies da árvore filogenética, incluindo diferenças nos sistemas reprodutivo, circulatório e radular. Esse esforço completo é comum para vertebrados, mas só começou a ser aplicado a moluscos na última década.

O papel da ciência cidadã

As conchas secas e caramujos preservados utilizados como material para a pesquisa estavam, em sua maioria, na coleção malacológica da FFLCRP e do MZ. Daniel ressalta a participação de Rodrigo Salvador, malacólogo pela USP e pesquisador do museu da Universidade de Helsinque, que fotografou um exemplar da Coleção Estatal de Zoologia da Baviera em Munique.

Para os exemplares vivos, inicialmente foram realizadas observações no campus FFLCRP e em uma área florestal do município de Caconde (SP), coletando dados sobre aparência de vida, ecologia e história natural da espécie. Porém, para além da pesquisa de campo, um fruto valioso do trabalho foi reforçar a importância da ciência cidadã. 

O iNaturalist, site no qual integrantes publicam imagens de animais avistados em diversos lugares do mundo, foi fonte de informações cruciais para elaborar a distribuição geográfica do D. Magus. A plataforma digital permitiu identificar mais de 30 indivíduos da espécie, incluindo os únicos registros dos Estados de Rondônia, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Paraná. 

“Essa é uma tendência em pesquisa de biodiversidade”, afirma Rafael. “Às vezes você consegue encontrar coisas incríveis bem ali no seu quintal — como um bicho que ninguém conhece ou que não é visto há 200 anos”, brinca. “Isso diz muito sobre a nossa biodiversidade no Brasil e também sobre o quão pouco a gente presta atenção nesses animais.” A ciência cidadã aproxima as pessoas da comunidade acadêmica, revelando como a contribuição coletiva é uma chave para avanços em pesquisa. “Enquanto a anticiência cresce no mundo, esse tipo de alternativa nos dá um pouco de esperança”, finaliza. 

 

*Com informações do Jornal da USP