Ponto 14

Artistas amazônicos usam versos, danças e corpos em defesa da floresta

A obra tanto apresenta os segredos da cultura para os leigos como acolhe os espíritos locais.

Por Gazeta do Paraná

Artistas amazônicos usam versos, danças e corpos em defesa da floresta Créditos: Tiago Hakiy/Arquivo Pessoal

“A aldeia toda se incendeia / Na manhã de sol na floresta. / Tem peixe assando na fogueira / E suco de cupu para completar a festa.” Os versos escritos por Tiago Hakiy (foto de destaque), poeta e escritor indígena, permitem que o leitor entre no coração da floresta amazônica e se sinta parte dela. Durante alguns instantes, somos parte da festa, dançamos, provamos peixes e sucos típicos da região. O trecho acima faz parte do livro Abecedário Poético da Floresta, lançado em novembro. A obra tanto apresenta os segredos da cultura para os leigos como acolhe os espíritos locais.

“Na escola, eu sempre encontrei livros que não tinham nada a ver com a minha realidade. Eles falavam sobre tubarão e eu nunca vi tubarão. Falavam de frutas, como maçã e morango, que eu nunca tinha comido. Sobre peixes que não eram parte da nossa fauna amazônica. Eu se me sentia perdido nessa literatura. Quando escrevo hoje, penso nos meninos e nas meninas nascidos no meio dos rios e florestas, que andam de canoa. Para que eles possam se identificar com a própria realidade”, diz o poeta.

Nem sempre os escritos de Tiago Hakiy seguiram esse caminho. Pertencente ao povo sateré-mawé, ele nasceu na comunidade Freguesia do Andirá, no município de Barreirinha, no Amazonas, longe de espaços editoriais e grandes centros urbanos. Aos 6 anos de idade, um escritor foi até a comunidade e o ajudou a conhecer o universo dos livros. Aos 19 anos, se mudou para Manaus, onde entrou na universidade e teve a possibilidade de lançar o primeiro livro de poesias.

Os versos iniciais não falavam da realidade cultural dele e do povo indígena. Eram poemas mais idílicos. Tudo mudou quando ele encontrou o escritor Daniel Munduruku, um precursor da literatura indígena no Brasil.

“Ele me disse assim: ‘Tiago, por que você não escreve sobre o teu povo e a tua origem? Se nós não continuarmos escrevendo sobre nossos povos, o apagamento cultural vai continuar acontecendo’. Ele me instigou a rememorar toda a minha ancestralidade. E a partir daí a poesia passou a destacar nossa riqueza como indígenas da Floresta Amazônica, nossas trocas e cuidados com ela, que é tudo para nós. Ela nos dá alimento, moradia, caminhos e inspirações”, lembra Tiago Hakiy.

O poeta indígena tem hoje 44 anos e 17 obras publicadas. E participações em diversas antologias, as quais ele valoriza muito, por entender que o trabalho coletivo é uma característica importante das comunidades indígenas. Foi com a antologia Apytama, organizada por Kaká Werá, que ele venceu, coletivamente, o Prêmio Jabuti na categoria Livro Juvenil.

“Os povos indígenas são frutos da oralidade. Eu nasci ouvindo histórias dos mais velhos. Naturalmente, a gente aprende a contar histórias que a gente ouve desde criança, e essas histórias são um instrumento de aprendizagem, não só de entretenimento. São uma forma de ensinar e de transmitir conhecimento”, destaca o escritor indígena.

Tiago Hakiy também entende hoje a poesia como um instrumento político, capaz de gerar empatia de outras pessoas e engajá-las na luta pelos direitos dos povos indígenas e pela preservação da floresta.

“A literatura serve como uma bandeira para que as pessoas possam nos conhecer melhor. Nossas cultura e tradição, que não são nem melhores, nem piores. Apenas diferentes. E nós queremos ser ouvidos, compreendidos e respeitados”, diz. “Queremos que essas pessoas também cuidem dos nossos rios, das nossas árvores, dos nossos pássaros. Por isso que, quando nós clamamos pela preservação da floresta, sabemos da importância dela não só para o Brasil, mas para todo o planeta. Precisamos que todos tenham esse olhar de sensibilidade para as pessoas que moram dentro da floresta.”

 

Festival Parintins

Junho é mês de festa na Amazônia. Em Parintins, estado do Amazonas, quase divisa com o Pará, o Bumbódromo recebe os desfiles do bois Caprichoso e Garantido. É o duelo do azul e do vermelho, que dura três noites. O espetáculo se destaca pelas cores, luzes, vestimentas, adereços, danças e músicas. Mas os impactos não são apenas estéticos e sensoriais.

“Os dois bois vêm trazendo mensagens importantes, como a emergência da crise climática, o foco na Amazônia, a preservação dos povos tradicionais. Tudo isso tem que estar inserido no festival”, explicou Marciele Albuquerque, indígena do povo Munduruku e cunhã-poranga do Boi Caprichoso, durante o TEDxAmazônia 2024, evento realizado entre o final de novembro e o início de dezembro, em Manaus.

Segundo a tradição, a cunhã-poranga é “moça bonita, guerreira e guardiã, que expressa a força através da beleza”. Ela é avaliada pelos jurados em critérios como beleza, simpatia, roupas e movimentos. Mas Marciele garante que os atributos dela no festival vão muito além de ser uma mulher bonita.

“Quando a gente vai para a arena, quer fazer mais que uma apresentação, um movimento de dança difícil, algo espetaculoso. A gente quer realmente protestar através da nossa dança, do nosso olhar, da nossa potência e força. É ir muito além da parte física da mulher. A gente carrega essa ancestralidade. Eu não sou apenas uma representação. Eu sou indígena, cunhã-poranga. O meu corpo é político. É força. É ancestralidade”, diz Marciele.

Nascida em Juriti, no Pará, ela mora em Manaus há mais de 13 anos. É formada em administração e tem participado como ativista contra as mudanças climáticas, a fome e o futuro da Amazônia. Já participou da Semana do Clima, da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, Estados Unidos, em 2023. E, no mesmo ano, esteve na Conferência da Juventude pelo Clima, promovida pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em Roma, na Itália.

“A arte desperta o senso político. Você começa a questionar e buscar respostas. Começa a querer lutar por algo. Foi assim que eu despertei, não foi porque alguém veio falar comigo da política tradicional. Através da arte consegui ter esse senso bem crítico, despertar para essa luta coletiva. Mesmo que eu não sofra por determinada situação, outros podem estar sofrendo e vou lutar por elas. A arte tem a força de união. Isso, de uma forma mais leve e capaz furar bolhas”, defende a cunhã-poranga.

 

Créditos: Agência Brasil