Arrecadação de cartórios no Brasil registra recorde com R$ 31,4 bilhões em 2024

O valor mantém o setor como um dos mais rentáveis do país, e também um dos mais blindados a mudanças

Por Da Redação

Arrecadação de cartórios no Brasil registra recorde com R$ 31,4 bilhões em 2024 Créditos: Freepik

Em 2024, os cartórios brasileiros registraram receita recorde: R$ 31,4 bilhões, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O valor, resultado de milhões de registros civis, autenticações, escrituras e outros serviços obrigatórios por lei, mantém o setor como um dos mais rentáveis do país, e também um dos mais blindados a mudanças. A arrecadação gerou R$ 3 bilhões em tributos para os cofres públicos, mas a concentração de renda entre titulares e as distorções no modelo aumentam o debate sobre a necessidade de modernização por parte do Governo Federal.

Embora sejam serviços públicos, os cartórios são operados pela iniciativa privada, por profissionais que assumem a função por meio de concurso público. Esses delegatários não são considerados servidores e, por isso, não estão sujeitos ao teto salarial do funcionalismo. A média mensal de ganhos de um titular chega a R$ 156 mil, segundo dados da Receita Federal, com casos extremos, como no Distrito Federal, onde a média ultrapassa R$ 500 mil.

Criado pela Constituição de 1988, o modelo consolidou um monopólio privado com função pública, delimitado por áreas de atuação e protegido contra a concorrência. Isso significa que o cidadão é obrigado a recorrer ao cartório da sua circunscrição, mesmo quando poderia encontrar preços mais baixos ou serviços mais rápidos em outra localidade. O argumento oficial para essa territorialidade é a segurança jurídica; críticos afirmam que ela serve, na prática, para preservar um mercado cativo.

As tabelas de preços dos serviços são definidas pelos tribunais de justiça estaduais e aprovadas pelas assembleias legislativas. Os valores, chamados de emolumentos, variam drasticamente entre estados. Declarar uma união estável, por exemplo, custa R$ 103 em Santa Catarina e R$ 592 em São Paulo. Um protesto de dívida de R$ 25 mil pode sair por R$ 69 no Ceará ou R$ 4.018 no Piauí. Para lavrar um testamento, a diferença é ainda mais gritante: R$ 942 em Santa Catarina contra R$ 210 mil em Minas Gerais.

O setor também é marcado por benefícios e isenções. Parte da receita é repassada a fundos que remuneram serviços gratuitos, como a primeira via da certidão de nascimento. Porém, o repasse não impede que o grosso do faturamento fique com os titulares, que ainda contam com abatimentos tributários específicos e deduções generosas de despesas no livro-caixa.

“É o único serviço público exercido por delegação privada, ainda tem concessão hereditária funcionando, então todo regime trabalhista, tributário, administrativo é complicado e anômalo”, afirma o advogado Michel Berruezo.

Nos últimos anos, a Receita Federal intensificou a fiscalização. Com a “Operação Cartório”, iniciada em 2021, a arrecadação de tributos do setor saltou para R$ 3,5 bilhões em 2024, um aumento de 94,4% em relação a 2020. A medida identificou problemas como a confusão entre despesas pessoais e custos operacionais e irregularidades na folha de pagamento, incluindo vínculos trabalhistas antigos que não recolhem contribuição previdenciária.

Apesar da pressão por mudanças, a resistência à modernização é forte. A digitalização de registros, a integração nacional de dados e o uso de tecnologias como blockchain poderiam reduzir custos e prazos, mas esbarram no temor de perda de receita. Hoje, uma transferência de imóvel pode levar semanas e custar milhares de reais; em países como Estônia e Dinamarca, processos semelhantes são concluídos online em minutos.

Especialistas apontam que a burocracia cartorial tem impacto direto na economia. No mercado imobiliário, o peso das taxas e da demora pode aumentar em até 12% o valor final de um imóvel, o que representa cerca de R$ 18 bilhões por ano. Estudos do governo indicam que a integração e digitalização dos registros públicos poderiam mais que dobrar o estoque de crédito no país, de R$ 4,5 trilhões para R$ 10 trilhões.

Enquanto a tecnologia avança em outros setores, o sistema cartorial brasileiro permanece atrelado ao papel, ao carimbo e à presença física. Para críticos, trata-se de um atraso que transfere recursos bilionários da sociedade para um grupo restrito de beneficiados, protegido por legislação específica e por um lobby poderoso.

A discussão sobre o futuro dos cartórios envolve mais do que modernização: trata-se de repensar um modelo econômico que, embora cumpra funções essenciais, opera com baixa concorrência e altíssima rentabilidade para seus titulares. O desafio está em equilibrar a garantia de segurança jurídica com a necessidade de reduzir custos e ampliar o acesso, sem que a população continue arcando com a conta de um sistema moldado para se proteger das mudanças.

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