O direito à saúde e os bebês "de faz de conta"
Surto de "bebês reborn" expõe contradições diante da negação de tratamentos essenciais por planos de saúde
Por Graziele Santos

Enquanto o Brasil assiste a um fenômeno coletivo envolvendo os chamados “bebês reborn” - bonecos hiper-realistas tratados como filhos, com direito a enxoval, documentação, perfis em redes sociais e até disputas judiciais por “guarda” e monetização -, famílias de crianças autistas e pacientes oncológicos seguem enfrentando negativas de cobertura por parte dos planos de saúde, mesmo diante de legislações claras e decisões judiciais favoráveis.
Entre o bizarro e o sintomático
Nos últimos meses, as redes sociais foram tomadas por relatos e vídeos de adultos simulando rotinas de cuidado com bebês reborn: alimentação, consultas médicas, passeios e até tentativas de acesso a benefícios e atendimentos preferenciais em espaços públicos.
O fenômeno ganhou contornos tão extremos que motivou a apresentação de pelo menos três projetos de lei no Congresso Nacional, visando proibir o atendimento desses bonecos em unidades de saúde, filas preferenciais e outros direitos reservados a crianças reais. Casos recentes incluem disputas judiciais pela “guarda” e administração de perfis digitais dos bonecos, que hoje geram engajamento e lucro nas redes sociais.
O debate ganhou força a ponto de envolver psiquiatras, advogados e parlamentares, que divergem entre considerar o fenômeno uma simples brincadeira, um sintoma de carências emocionais ou um “surto regressivo” da sociedade contemporânea.
A realidade dura para famílias
Enquanto o debate sobre os bebês reborn mobiliza legisladores e a opinião pública, a realidade de quem depende de planos de saúde para tratamentos essenciais é marcada por obstáculos e frustrações. A recusa de cobertura para terapias de crianças autistas lidera o ranking de processos judiciais contra planos de saúde em São Paulo, segundo levantamento do Idec e da PUC-SP: só entre 2019 e 2023, foram mais de 3 mil ações relacionadas a negativas de tratamento para o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
As operadoras alegam, com frequência, que determinados tratamentos - como terapia ABA, fonoaudiologia e psicoterapia - não constam no rol obrigatório da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No entanto, desde 2022, a própria ANS passou a exigir cobertura ilimitada para terapias de autistas, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que o rol da ANS é exemplificativo: se há prescrição médica, o plano deve custear o tratamento, mesmo que não esteja listado.
O mesmo cenário se repete para pacientes oncológicos, que frequentemente têm tratamentos negados sob alegações contratuais ou de ausência no rol da ANS, práticas consideradas abusivas e reiteradamente revertidas no Judiciário.
A advogada Daniela Novelli, especialista em Direito Médico, destaca que “é inadmissível que, enquanto o país discute projetos de lei para restringir direitos a bonecos, famílias de crianças autistas e pacientes com câncer precisem recorrer à Justiça para garantir acesso a tratamentos básicos e essenciais. A legislação brasileira é clara: o rol da ANS é exemplificativo, e a negativa de cobertura, diante de prescrição médica, é ilegal. O Judiciário tem sido firme em assegurar esses direitos, mas é inaceitável que o consumidor precise judicializar para ter acesso ao que já lhe é garantido por lei. O foco deveria ser a proteção da vida e da saúde dos beneficiários, e não o debate sobre objetos que simulam crianças”, frisa ela.
Contrastes e prioridades
O contraste entre o surto midiático dos bebês reborn - que movimenta cifras, engajamento e projetos de lei - e a luta silenciosa de famílias por tratamentos de saúde revela prioridades distorcidas no debate público e legislativo brasileiro. Enquanto bonecos são tratados como patrimônio e até objeto de disputa judicial, vidas reais seguem ameaçadas por negativas sistemáticas de cobertura, exigindo mobilização, informação e, muitas vezes, a intervenção do Judiciário para garantir direitos básicos.
A discussão sobre o fenômeno dos bebês reborn, embora relevante do ponto de vista sociológico e psicológico, não pode desviar a atenção das urgências reais do sistema de saúde suplementar, que precisa ser cobrado e responsabilizado pelo cumprimento de suas obrigações legais e éticas.
Foto: Reprodução/G1.
Créditos: Assessorias Cascavel